sábado, 10 de maio de 2008

 

A Linguagem Sagrada da Cabala - Ensinamentos metafísicos da Filosofia Oculta

Paulo Stekel



Origens controversas

O problema da origem e as fases iniciais da Cabala, essa forma de misticismo e teosofia nascida no meio judeu, segundo uns, de improviso no séc. XIII, segundo outros, originada nos tempos pré-exílicos, e segundo outros ainda, originada na época do Continente Perdido de Atlântida, é sem dúvida um dos mais difíceis da religião judaica que se seguiu à destruição do Segundo Templo. Mas, ao mesmo tempo, é um dos mais importantes. O significado que adquiriu o movimento cabalista e sua linguagem sagrada peculiar dentro do mundo judeu foi tão grande e em alguns momentos sua influência foi tão preponderante, que se desejamos compreender as possibilidades religiosas próprias do Judaísmo, o problema do caráter histórico específico deste fenômeno alcança o primeiro lugar. Os investigadores, conseqüentemente, têm prestado grande atenção a este problema, procurando-lhe uma solução.

Um fato é que, antes de tudo, as fontes originais, os textos cabalísticos mais antigos - os mais apropriados para oferecer luz sobre as origens da Cabala - não foram estudados suficientemente. Isto não surpreende, dado que difícilmente existem nestes documentos referências históricas que expliquem mediante um testemunho direto o meio no qual surgiu a Cabala ou suas origens. Na medida em que tais referências existem são, fundamentalmente, relatos pseudoepigráficos ou invenções. Também não são muitos os textos místicos detalhados que facilitem a tarefa do historiador a compensar a falta de documentos históricos. Pelo contrário, o historiador encontra textos preservados só em estado fragmentário, difíceis de entender e que empregam conceitos e símbolos tão extranhos que às vezes são simplesmente incompreensíveis. Estas dificuldades no deciframento dos textos mais antigos aumentam ainda mais quando considera-se o estilo em que foram escritos; a mesma sintaxe pode, com freqüência, conduzir o leitor ao desespero. Ademais, estas fontes primárias são escassas. Quase todos esses documentos se perderam no transcurso da conturbada história do Judaísmo.

Adolph Jellinek foi o único erudito do séc. XIX que publicou textos que interessem à investigação da Cabala do Séc. XXI e destes só alguns se relacionam com o período inicial. Os autores que escreveram sobre a Cabala se contentaram em estudar unicamente o que os próprios cabalistas tiveram oportunidade de publicar. Assim, não se pode imaginar quão insatisfatórias foram, na verdade, estas edições de textos difíceis para o investigador moderno e como podem facilmente conduzir a conclusões falsas. Obras de autores venerados, como Agrippa, Barrett, Guaita, Levi, D'Alveydre, Papus e até mesmo Helena Blavatsky, que freqüentemente copiam-se entre si, raramente apresentando algo de novo, podem, ainda que tenham seus méritos, conduzir a muitos erros sobre o que realmente seja a Cabala. Neste terreno, a ausência de um consciente trabalho filológico preliminar cujas conclusões pudessem apresentar a base para uma estrutura compreensiva conduz a resultados desastrosos. Este desastre tem sido venerado como Cabala verdadeira por muitos, inclusive artistas que caem de amores por uma pseudo-cabala que mais parece um caça-níquel do que misticismo profundo.

Da literatura cabalística da primeira metade do Séc. XIII sobreviveu muito mais do que antes se supunha. Se estes escritos não contêm muitas das fontes originais que antecedem ao período, ao menos permitem que formemos uma idéa precisa do estado da Cabala na geração que se seguiu à sua entrada em cena.

Ainda que pareça que a Cabala como a conhecemos não seja muito anterior ao Sefer Ha-Zohar (mais conhecido por Zohar), do Séc. XIII, há indícios de misticismo em toda a história judaica. Seja a Cabala uma tradição milenar ou simplesmente uma sistematização que une todo o misticismo da Torah, do Talmud e mais o gnosticismo dos quatro primeiros séculos da Era Cristã num todo (nem sempre) coeso, seu valor para o estudante interessado em Filosofia Oculta é inegável.

As fontes da Cabala, método e algumas supertições

As três fontes mais adequadas para esse estudo são: O Sefer Bereshith (o texto hebraico de Gênese, terminado no Exílio em Babilônia, Séc. VI a.C. e, por extensão, todo o texto da Torah, a Lei); o Sefer Yetsirah, o “Livro da Criação” (cuja data é controversa, mas pode ser do início da Era Cristã); o Sefer Ha-Zohar, ou apenas Zohar, o “Livro do Esplendor” (Séc. XIII), que se apresenta como uma compilação por vezes confusa do que se considerava Cabala naquele momento. A Cabala é mais que a junção destas três fontes. Há visíveis elementos da Filosofia Grega e Gnosticismo na Cabala medieval. Portanto, a excessiva importância dada, por exemplo, ao Zohar, por alguns cabalistas judeus, não se justifica. Há muita superstição nesta veneração desmedida.

Uma delas se refere à excessiva importância dada às letras hebraicas mais que ao som ou ao significado das palavras. Apenas passar os olhos sobre uma página hebraica do Zohar, não se sabendo do que se trata, nos parece mais uma idolatria descabida que santidade desejada. Já vimos protestantes pentecostais sugerindo a mesma coisa a adeptos analfabetos, ou seja, o de apenas passarem os olhos sobre o texto bíblico em Português, como forma de agradar a Deus. Ora, Deus se agrada do analfabetismo de seus filhos? Não agradaria mais se esta gente fosse devidamente educada e alfabetizada, para ter acesso direto ao que Deus quer que se saiba?

Estudar Cabala requer três atitudes bem específicas: o estudo das fontes disponíveis mais antigas (citadas acima), complementadas por alguns autores posteriores; a contemplação do que neles consta juntamente com o uso de operações cabalísticas; a aplicação da ética deduzida dos estudos no seu próprio dia-a-dia (pois isso é o que torna a Cabala uma Tradição viva que conduz à Unidade). Sem estas atitudes, não se trata de Cabala, mas de pseudocabala, uma superstição inconsciente que arrebanha adeptos famosos, que querem apenas evadir-se momentaneamente de sofrimentos mundanos, mas não estão nem um pouco interessados no objetivo último da Cabala: a Unificação com o Absoluto, o “aderir-se a Deus”. Usar a Cabala apenas para garantir prosperidade ou ganhar direito é charlatanismo, não algo divino. É a porta de entrada para a Magia Negra (entendendo-se por Magia a aplicação prática da Cabala, no processo de comunicação com o invisível e na transformação do entorno do praticante).

O Livro da Criação

No que se referere à primeira das fontes cabalísticas, o Sefer Bereshith, ou o Livro de Gênese, todos o conhecemos da Bíblia. Mas, conhecê-lo em Hebraico é imprescindível para o cabalista. Contudo, ele é mais uma fonte de pesquisas para o cabalista do que um livro DE Cabala. Ele é usado nas práticas com operações cabalísticas, métodos de análises das palavras da Torah que revelam dados novos da Sabedoria Divina.

A segunda fonte, o Sefer Yetsirah, ou O Livro da Criação, este sim, é um livro de Cabala. As doutrinas básicas da Cabala clássica ali aparecem, especialmente as que versam sobre as letras hebraicas. Parece ter sido escrito entre os séc. II e VI d.C.

O livro contém um discurso muito compacto sobre cosmogonia e cosmologia. Parece que o autor quis harmonizar suas próprias idéias, nas quais se nota uma clara influência de fontes gregas, com as disciplinas talmúdicas relativas à doutrina da Criação e da Merkabá (O Carro Celeste), e no cumprimento desta empresa encontramos pela primera vez reinterpretações especulativas de concepções da Merkabá. Os estreitos vínculos que o livro mantém com as especulações judaicas relativas à Sabedoria divina (Hókhmah) ou Sofia, são evidentes desde a primeira frase: “Yah, o Senhor dos Exércitos (...) ordenou (formou) e criou o Universo em trinta e dois caminhos misteriosos de sabedoria (...).” Estes 32 caminhos de Sofia são os dez números primordiais, que são analizados no 1º capítulo, e o conjunto das vinte e duas consoantes do alfabeto hebraico, que são descritas de forma geral no 2º capítulo e mais particularmente nos capítulos seguintes como elementos basilares do cosmo.

O simbolismo do número 32 aparece também em alguns documentos gnósticos cristãos, mas quando lemos o Sefer Yetsirah parece que ali o número aparece pela primeira vez, o que não é real. Não obstante, Agrippa informa (em De occulta philosophia 2,15) que para os pitagóricos o 32 era o número da retidão por causa de sua quase infinita divisibilidade. Além disso, 32 é o valor da palabra hebraica “lêv”, “coração”, uma referência à bondade, atributo divino por excelência.


Os dez números primordiais são denominados Sefirot, um sustantivo hebraico que surge aqui pela primeira vez e que não guarda relação com a palavra grega sphaira, mas deriva de um verbo hebraico que significa “contar”. Sefirot, então, não significaria “esferas”, mas “numerações” ou mesmo “emanações”. Mas, segundo Steinschneider (Maihematib bei den Juden [Hildesheim, 1965], pág. 148), o termo original adquiriu seu sentido específico cabalístico como resultado da semelhança com a palavra grega. Ao introduzir um termo novo, Sefirah (singular de Sefirot), no lugar do habitual mispar, o autor parece indicar que não se trata simplesmente de uma questão de números ordinários, mas dos princípios metafísicos do universo ou de estágios da criação do mundo. Cada um destes números primordiais se associa a uma categoria concreta da criação, e é certo que as quatro primeiras sefirot emanam umas das outras. A primeira é o alento do Deus vivo. A segunda é o “alento do alento”, isto é, o elemento primordial do ar, que em capítulos posteriores se identifica com o éter, que se divide em material e imaterial. A idéia de um “éter imaterial”, assim como outros neologismos hebraicos no livro, parece corresponder a concepções gregas. Do ar primordial procedem a água e o fogo, a terceira e a quarta sefirot. Do ar primordial Deus criou as 22 letras; do fogo, o Trono da Glória e as hostes de anjos. O autor omite o elemento aristotélico da terra como elemento primordial.

As seis últimas sefirot se definem de um modo bem distinto; representam as seis dimensões do espaço, ainda que não se afirme expressamente que emanem dos elementos anteriores. A década primordial constitui uma unidade – ainda que sua natureza não esteja suficientemente definida – mas de nenhum modo é idêntica à Divindade.

O texto não oferece uma exposição detalhada das relações entre as sefirot e as letras. Enquanto que a especulação numérico-mística sobre as sefirot tem, provavelmente, origem em fontes neopitagóricas, a idéia de letras “pelas quais foram criados o céu e a terra” pode muito bem provir de dentro do próprio Judaísmo.

Linguagem sagrada: palabra e signo gráfico

Esta cosmogonia e cosmologia do Sefer Yetsirah, baseada no misticismo da linguagem, revela sua relação com idéias astrológicas. Caminhos diretos conduzem delas à concepção mágica do poder criativo e milagroso das letras e das palavras. Isso, aliás, pode ser encontrado no Egito antigo, onde o deus Toth era o responsável por dar poder às palavras nas invocações. Na Índia clássica também se crê no poder oculto das letras do alfabeto, que teria sido emanado pelos deuses. O caráter sagrado de alfabetos como o Hebraico e o Devanagari (usado para se escrever a língua sânscrita), quiçá também a escrita egípcia, reside em dois elementos característicos que não podemos esquecer:

1º – O sentido místico, mais que gramatical, das palavras escritas com estes alfabetos. Palavras bem comuns do dia-a-dia podem conter significados muito profundos e secretos, sejam elas pertencentes a línguas escritas ou apenas orais. Aqui, o ponto importante é o som da palavra e seu significado gramatical, sem que ambos possam ser separados.

2º – O sentido do símbolo atrelado à própria forma do signo alfabético (ou do ideograma, ou do hieróglifo, no caso do Egito antigo), não correspondendo, necessariamente, a alguma palabra do léxico. A escrita embrionária pré-histórica parece atribuir poder exatamente a este sentido dos símbolos gráficos, e isso pode anteceder ao poder atribuído às palavras pronunciadas em si.

Encontramos estes dois elementos na tradição cabalística. Tanto as palavras podem derivar outras, considerando-se seu sentido gramatical e místico, quanto as letras parecem guardar algum tipo de poder simplesmente por suas formas. A tradição zohárica levou esta idéia ao extremo, como o delatamos, ao atribuir um poder inerente às letras hebraicas do Sefer Ha-Zohar mesmo quando não se saiba o que está escrito. Mas isso é superstição, e não a mesma coisa que atribuir sentido místico ao símbolo que é o signo gráfico.

O Livro da Criação parece mais um vademécum para a Cabala. O autor encontrou denominações concretas e apropriadas para noções que, até então, a língua hebraica não sabia como traduzir em termos adequados. Este texto se tornou influente em círculos completamente diferentes, tanto naqueles que viam em sua teoria da linguagem um fundamento da magia, quanto naqueles para os quais a doutrina do livro incluía elementos autênticos da gnose e a cosmogonia da Merkabá. Talvez possamos considerar que este texto se situa nos limites do esoterismo, em parte dentro dele, mas em parte trascendendo-o. De fato, a verdadeira Cabala surge por revelação, e cada cabalista pode, dependendo de suas contemplações, chegar a revelações específicas. Isso é definido pelo Zohar como a capacidade que tem o cabalista de “criar novos mundos” cada vez que descobre algo novo na Torah. Contudo, se sua revelação é falsa, diz o Zohar que ele cria uma espécie de “anti-mundo”, uma “casca”, um mundo diabólico onde a matéria tem a preponderância, em detrimento do espírito.

Isso tudo aplicado, por exemplo, à Numerologia Cabalística ou à Magia Prática e à confecção de pantáculos, é muito interessante. Por meio de cálculos vertendo o nome de alguém para letras hebraicas é possível chegar a concepções místicas relacionadas a este de caráter muito profundo. É como se o cabalista criasse “um novo mundo” com o nome desta pessoa. Isso permite que se crie um elã, uma força astral que potencializará as ações em prol da pessoa para a qual se trabalha um pantáculo, um talismã ou uma frase para contemplação (o correspondente ao “mantra” indiano).

O significado da palabra “Cabala”

Qual era o significado da palavra Cabala para os círculos dos próprios cabalistas em vários momentos de sua história? Cabala é uma palavra bastante comum no hebraico rabínico: significa simplesmente “tradição”. No Talmud serve para designar as partes que não pertencem ao Pentateuco da Bíblia hebraica (o conjunto da Lei, dos Profetas e dos Hagiógrafos). Mais tarde deu-se a cada tradição este nome sem que implicasse nenhum matiz místico. A idéia de que o filósofo Shlomó ibn Gabirol a tenha empregado no sentido que adquiriría entre os cabalistas é uma suposição muito difundida, mas completamente falsa. Tem muito pouco que ver com a palavra aramaica qibla (“amuleto”). Entretanto, várias gerações depois os cabalistas espanhóis conheciam muito bem qual era a noção original que seus predecessores tinham em mente quando empregavam a palavra Cabala.

Numa data tão tardia como o ano de 1330, Meir ben Shlomó ibn Sahula, um discípulo de Shlomó ibn Adret, se expressou clara e diretamente sobre a origem e o sentido desta nova disciplina. Ele escreveu, no prefácio a seu comentário sobre o Sefer Yetsirah:

“Nos compete explorar todas essas coisas segundo a medida de nosso entendimento, e seguir, no que concerne a elas, o caminho daqueles que, em nossa geração e nas precedentes, tem sido chamados cabalistas durante duzentos anos, mekubalim, e eles denominaram Cabala à ciência das dez sefirot e a algumas idéias dos mandamentos bíblicos.”

Cabala: origem recente?

Se pode inferir, pois, que aos olhos destes cabalistas a nova concepção teosófica de Deus, baseada na doutrina das dez sefirot do Libro Sefer Yetsirah, assim como as razões místicas fundadas nesta doutrina para certos preceitos rituais da Torah, constitui o conteúdo da Cabala. Segundo a própria opinião do autor citado, este ensinamento não é de modo algum antigo; não remonta a muitos séculos, mas tem aproximadamente duzentos anos de antigüidade, o que nos faz regressar a sua fase inicial, ao período das revelações do profeta Elias - isto é, a Provença, por volta do século XIII. Debe-se compreender também, que a clara consciência que tem este cabalista posterior da relativa juventude da Cabala não lhe impede de considerá-la um caminho para o conhecimento que “nos compete” seguir. E por que? Porque, ainda que recente como doutrina “sistematizada”, a Cabala se baseia na existência perene de um misticismo hebreu que estava escondido na Torah, e que seria descoberto no momento certo. Aliás, deste ponto de vista, há ainda muita coisa na Torah a ser descoberta. Nesta visão, alguns tiveram acesso a chaves místicas, como Moisés, Daniel e Jó. Ademais, se há na Cabala um misto de Judaísmo, Zoroastrismo, Gnose, Filosofia Grega e até Sufismo, como pensam muitos pesquisadores, estamos diante de uma doutrina fabulosamente universal que vale a pena ser conhecida e investigada.

Estudando as várias fases do misticismo hebreu podemos entender que a sua culminância na Cabala não é um fato isolado, mas o cúmulo de um processo místico muito longo.

Na verdade, ao lado do texto bíblico, especialmente o Antigo Testamento, sempre existiu uma Tradição destinada a instruir uma classe de Iniciados na interpretação da Lei (a Torah). Esta Tradição, de transmissão oral, era baseada em dois aspectos de ensinamento:

1º – Corpo: Era o ensinamento relacionado com o “corpo material” da Bíblia. A construção de cada capítulo da Bíblia hebraica era submetida a certas regras fixas, baseadas em cálculos matemáticos, transposição de letras, etc. O proposto “Código da Bíblia” deve ter suas bases nesta parte da Tradição. Mas este “código” não é, certamente, profético, e sim, cabalístico, ou seja, transmite conhecimentos universais sobre a Divindade, o Homem e o Universo.

2º – Espírito: Era o ensinamento relacionado com o “espírito” do texto bíblico. Os comentários e interpretações tinham sempre dois níveis de interpretação, a saber: a interpretação legislativa (a Lei como conjunto de regras determinando as relações sociais em Israel, entre os vizinhos e entre a Divindade) e a da Doutrina Secreta (conjunto de conhecimentos teóricos e práticos versando sobre as relações entre Deus, o Homem e o Universo).

História do misticismo hebreu

O “misticismo hebreu” é uma visão humanista que percebe e transmite a mensagem e a inspiração do processo messiânico (um processo místico) do povo judeu. Esta visão assenta as bases para a formação da personalidade do homem, tanto em sua relação com o Todo-Poderoso (bên 'adám lemaqôm, lit. “entre o Homem e o lugar sagrado [de Deus]”) como dos homens entre si (bên 'adám leĥaverô, lit. “entre o Homem e seu próximo”).

O apego a Deus (Dveqúth) involucra, pois, este sentido ético como princípio básico e essencial do pensamento e da prática do misticismo hebreu. Essa liga divina se produz ao realizar o homem os preceitos mosaicos (Mitsvôth, lit. “mandamentos, preceitos”), e com disposição constante os dedica ao Eterno com toda reverência e candor. Uma conjunção com Deus que se enquadra nas prescrições religiosas e não tolera superstições, magias nem ficções. Uma conformação moral íntegra, que é conseqüência de uma intuição metafísica e não imposta somente pelas licitudes oficiais. Metafísica, enquanto se ocupa da natureza da realidade e do significado da vida humana, mediante formulações que vão além do dedutível através dos dados empíricos. São especulações ultraterrenas que transcendem toda possível experiência humana, sem ser obscurantista nem desestimar a verdade científica.

O misticismo hebreu é vivência dinâmica do ser, tanto em escala individual como na social, à procura da integração cósmica do homem na Criação divina. A vida tem sentido plausível, quando o homem funciona como propositor para seu aperfeiçoamento na base de valores perenes (estude-se este enfoque em Isaías, cap. 49), A Real Existência só tem vigência quando é potencializada com expoentes éticos. Contrariamente, se produz em cada instante o homicídio do presente, que fica transferido imediatamente a um fútil passado, sem lograr participação alguma nos objetivos do futuro, do acariciado idílio do porvir. O misticismo realça e insufla veemente tomada de consciência na ascensão por esta escala de exercitação de verdadeiros valores. Ele dissolve as imperfeições psicossomáticas e ilumina a alma para poder distinguir a Verdade pura na elevação da Santidade, acima de toda a especulação racional, na procura do melhoramento universal. A vida profana, passageira, não serve para nada; decisivo é o sentido eterno e sagrado da vida, conforme o conceito de Rabi Shimon bar Yoĥay. Com efeito, o sentido das coisas e a alma das obras valem mais que os objetos em si, dentro da sensibilidade mística.

O segredo místico reside principalmente na sutil e reservada capacidade de meditação e retiro espiritual que imprime sua essência. Seu meio é absolutamente dissociado de todo fetichismo, simulação ou ocultismo. Sua presença reitora ou corretora do destino humano não requer, por certo, um proselitismo massivo. As exigências extremadas de verdade e de consagração na ação permanente lhe impedem, por outra parte, de converter-se em corrente popular. Entretanto, a missão do misticismo acha seu apostolado e sua militância em cada geração. Supõe-se que seus ideais sejam próprios de uma elite puritana, de espírito seleto - “pessoas de relevância” ou o “homem verdadeiro”. Mas não são eremitas nem espiritistas, apenas pessoas armadas de fé e devoção e dotadas de vida interior suprasensível, com visão direcionada ao serviço universal e impulsionados ao bem humano. Tudo isso como resultado da pureza de amor e solidariedade e do aprofundamento do estudo dos conhecimentos arcanos, distantes da frivolidade dos prazeres sensuais e da habituação mecanicista da vida.

Homens assim existiram desde os tempos bíblicos: ver Juízes III, Isaías X e Jeremias III. Depois do período profético, a germinação do misticismo foi gestada por intrépidos Tsadiyqíym (“Justos”), que protagonizaram realidades em conciliação sobrenatural. Entre eles: o tanaíta Shimon bar Yochay; o cabalista Rabi Itschaq Luria (Aríy, “o leão”); e o corifeu do Hassidismo, Rabi Israel Baal Shem Tôv (Besht).

Misticismo não é mistificação. O misticismo não admite sofismas nem tolera ficções. Sua imagem está desvinculada completamente dos indivíduos que se intitulam “místicos”, “esotéricos”, etc. O verdadeiro místico não propagandeia sua condição interior, pois não é um vendilhão do Templo e não pode colocar seu coração (sede da mais alta Sabedoria Divina) à venda em qualquer mercado moderno. Sua condição mística é sua própria emanação gloriosa, sem precisar de mais nada para ser o que é.

A cosmovisão mística evidencia: que tudo está regido por movimento, que tudo está em trânsito. Fixo e absoluto só é Quem criou a tudo e a tudo governa: Deus. E o trabalho pensante do misticismo é perscrutar este mistério remoto e compenetrar-se em sua resolução até integrar-se divinamente, para determinar um sentido elevado ao viver do ser mais privilegiado da Criação: o Homem.

Encontramos o misticismo na Bíblia e especialmente entre os profetas Isaías, Ezequiel e Zacarias. O livro de Daniel é todo místico e particularmente os capítulos 07 a 12. Este livro faz a ponte entre a Bíblia e os apócrifos. O Talmud contém idéias místicas que servem para cobrir o vazio entre Deus e o Mundo. Nos Midrashím (homilias) e nos Targumím (traduções-comentários em aramaico, de Onkelos e Yonatan) continua o misticismo através de um abundante material rico em referências e interpretações deste gênero misterioso. Esta corrente se desenvolveu logo com uma variada gama de diferenciações conforme a escola que haja seguido no transcurso do tempo. Desde a época dos Tanaítas é difícil achar um só período na história no qual não se acuse a presença ou forte influência do misticismo na produção judaica. A Cabala é produto deste misticismo e, como o fenômeno místico é algo inerente ao homem que busca o divino, a Cabala é, além de Sabedoria hebraica milenar, um bem espiritual inestimável da Sabedoria espiritual da Humanidade. Não pertence, portanto, mais ao Homem judeu do que ao Homem místico de qualquer origem que busque A Verdadeira Realidade. E, mesmo sendo historicamente recente, a Cabala, como culminância do misticismo judeu-universal, é muito antiga.

Na evolução histórica do misticismo podemos enumerar quatro períodos:

1) De Moisés até a época talmúdica (500 d.C.) - “Cabala Mosaica”;

2) Desenvolvimento da Cabala Judaica (Século XIII, na Espanha);

3) Período “Êrets Israelí” (após a expulsão da Espanha);

4) Difusão popular na Europa, quando a Cabala se mescla a doutrinas de origens cristãs, rosacruzes e maçônicas – nascem, então, os conceitos de Cabala Cristã e Cabalismo Cristão. Para os cabalistas cristãos, Jesus é o Messias. Para os cabalistas judeus, o Messias é um conceito muito mais complexo, o mais profundo mistério divino, o qual não pode se resumir na figura comum de um homem de carne.

A determinação precisa do começo do misticismo constitui um dos problemas difíceis no estudo da história da civilização hebréia. A razão desta dificuldade reside em que os pesquisadores não dispõem de elementos suficientes de prova para si.

Eis alguns estudiosos dedicados ao tema (uma pesquisa dos seus nomes na Internet pode revelar mais detalhes das teorias dos mesmos):

Adolf Franck, em 1843, publicou em Paris sua obra “A Cabala ou a Filosofia Religiosa Hebréia”.

Heinrich Graetz propõe uma explicação histórica. Segundo ele, o Cabalismo é uma reação contra o extremo racionalismo de Maimônides e sua aparição dataria de princípios do Século XIII. Essa teoria poderia ser aplicada, no máximo, ao conjunto de textos que compõem o Sefer Ha-Zôhar, mas não a todo o conjunto do Cabalismo.

David Neumark, em sua “História da Filosofia Judaica”, expõe sua tese sustentando que mito e filosofia alternam sua predominância no transcurso da história, e desta maneira explica a aparição do Cabalismo [Nota: A Bíblia é um mito em si, e só encontramos traços de filosofia em poucos livros do Antigo Testamento já influenciados pelo pensamento grego].

Schlomó Rubin, em seu livro “Razéi Olám”, publicado em 1909, sustenta que o povo de Israel conhece a Torah e nada tem a ver com mistérios. Afirma que os primeiros místicos foram os Essênios, e que depois o misticismo foi o produto da influência de babilônios e persas sobre os judeus [Nota: Os textos da mística russa Helena Blavatsky, em especial “A Doutrina Secreta”, fazem afirmação semelhante, ainda que não com a intenção de desmerecer a validade do misticismo da Cabala].

Schmuel David Luzzatto sustenta, por sua parte, que a Cabala é filha da filosofia árabe [Nota: É certo que a filosofia árabe influenciou o Cabalismo, mas não lhe deve ser a origem].

Abraham Eliahu Harkavi fixa também o começo do Cabalismo na época babilônia e persa [Nota: Nesta época o misticismo hebreu sofreu influência babilônia e persa, mas era mais antigo, e tinha uma influência egípcia da época de Moisés].

M. H. Landauer quer diferenciar completamente o misticismo legendário do Cabalismo que surge no século XIII e cuja base deriva do Neoplatonismo.

Nahman Krohmal intentou achar na Cabala uma profunda visão metafísica. Tratou de englobar as bases místicas com a antiga tradição judaica, e mesmo simultaneamente com a filosofia hegeliana.

Ezriel Guenzig supõe que sua origem é muito antiga, mas considera que o misticismo da época gaonita não tem nada a ver com o cabalismo novo desenvolvido na França e na Alemanha.

Hilel Zeitlin remonta o misticismo judeu à mesma origem da religião mosaica. Assevera que não há diferença entre os mistérios que se podem achar no Talmud, entre a literatura mística da época gaonita e a cabalística que surgiu a partir do séc. XIII. Finalmente assegura que o misticismo judeu não sofreu influência alguma de Babilônia e Pérsia nem da Índia ou da Grécia nem da filosofia árabe, mas que é a alma da Torah de Moisés.

Cada disciplina requer para seu correto estudo um método particular próprio. Portanto, a verdade cabalística não deverá, pois, perceber-se de acordo com regras de análise e síntese, nem conforme a comparação histórica, nem com o auxílio da intuição, mas sim, deve-se estudá-la mediante uma compreensão íntima peculiar.

Isto sim, é o que fará com que se diferencie plenamente entre os princípios autênticos da Cabala, que são eternos e imutáveis, e os canais empregados para seu esclarecimento e difusão, que variam de geração em geração e de um cabalista a outro. Estas variações são forçosas e naturais, se consideramos a profusão do léxico que se emprega e os erros a que está exposto e na medida em que o exemplo não resulta fiel reflexo do exemplificado.

É óbvio dizer que a interpretação detalhada é diferente de um místico a outro, de acordo com seu nível intelectual, sua capacidade dialética e a pureza de alma de que esteja dotado.

Rabi Zevi Elimélekh de Dinov explica: “que os cabalistas deviam materializar de alguma maneira os conceitos espirituais do misticismo com designações reais, e por isso não se deve estranhar a diferente terminologia e modo de expressão entre, por exemplo, o livro Ha-Bahír e o Zohar, os geoním e o “Arí”. Todos tendem à mesma meta; a variante só se encontra no revestimento da linguagem e na coerência do léxico”.

O misticismo procura dar uma explicação acerca do segredo da Existência, do Criador e da Criação, e responder às dúvidas sobre a Vida, sua Meta e seus Fins em relação com o Universo. Propõe que a mente humana chegue a captar os efeitos misteriosos da obra da Criação; que entenda este Mundo como originado por Deus, sua Fonte e define o que o homem deve fazer em sua tarefa de aperfeiçoamento.

Costuma-se colocar a Cabala no campo da filosofia religiosa. Mas, diferentemente da filosofia, que é teórica e cuja exposição segue só o raciocínio, a Cabala implica um sentimento, e sua área se encontra intimamente vinculada ao coração dos que abraçam esta disciplina. A Cabala chega à profundidade psicológica daqueles que a professam e une intuitivamente ao homem em comunicação com Deus. Esta comunhão cabalística se professa de modo completamente distinto do ensinado pela Teurgia não-hebraica. Não tem nada a ver com as formas místicas tratadas pelos psicólogos. Não tem relação alguma com o tipo que oferece, por exemplo, Eckhart, que é especulativo-visual, e se diferencia essencialmente do que exibem a mística cristã ou hindu. Com efeito, será mais correto falar de “misticismo”, ou seja, de vida cabalística judaica, que de “mística” (ou “teologia mística”), que não é mais que uma atitude especulativa mental. A Cabala busca a perfeição da alma pelo exercício das Virtudes Morais, que é o único modo de fazê-lo.

Religião e misticismo judeus não são disciplinas divorciadas, por mais que tenham pontos não comuns. Enquanto religião significa culto codificado, comum a todos os crentes com serviço de ofícios públicos, o cabalismo é a poesia medular da religião, reservada aos homens sensíveis ao mistério divino. O propósito do misticismo, em íntima instância, é conseguir que o homem venha a aderir-se, apegar-se a Deus, a integrar-se e consubstanciar-se com Ele.

O misticismo deve ser enfocado a partir de duas fases, uma teórica e outra aplicada.

A teórica é uma expressão abstrata, produto do pensamento místico legado por gerações ancestrais. É a Cabala Filosófica ou Metafísica.

A aplicada é a que se ocupa de assuntos concretos por cujo meio resulta possível ao homem conectar-se com Deus e unir-se a Ele até sentir-se participando d'Ele. É a Cabala Prática, Teúrgica, Talismânica ou Oculta.

O valor das letras do alfabeto hebraico e a prática de realizar combinações com elas e de suas equivalências numéricas, a formação de siglas e acrósticos, se enraizam profundamente na operativa do misticismo.

Para mais informações sobre o assunto, consulte o blog do autor: http://hierolinguistica.blogspot.com

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