terça-feira, 9 de outubro de 2007

 

Entrevista: Monja Coen - "A vida em harmonia com a própria vida"

Entrevista concedida a Paulo Stekel


[foto de Verônica Campos]

Temos um particular apreço por Monja Coen Sensei. A conhecemos pessoalmente em Brasília, no mesmo dia em que entrevistamos para uma produtora de vídeo o rabino Henry Sobel, em 2005. O mau humor evidente do rabino naquele dia, que nos concedeu apenas três minutos cronometrados de uma entrevista com pouca boa vontade, foi recompensado pela serenidade e “objetividade zen” da Monja Coen, exemplo de vida religiosa e de ser humano. Não que, sendo também humana, ela não tenha momentos de mau humor. Mas o mau humor zen... sabem como é!

Monja Coen Sensei é missionária oficial da tradição Soto Shu - Zen Budismo, com sede no Japão, e é a Primaz Fundadora da Comunidade Zen Budista, criada em 2001. Foi ordenada monja em 1983, quando foi para o Japão, lá permanecendo por 12 anos, sendo 8 dos primeiros anos no Convento Zen Budista de Nagoia, Aichi Senmon Nisodo e Tokubetsu Nisodo.

Retornou ao Brasil em 1995, e liderou as atividades no Templo Busshinji (São Paulo), sede da tradição Soto Shu para a América do Sul, durante seis anos. Foi, em 1997, a primeira mulher e primeira pessoa de origem não japonesa a assumir a Presidência da Federação das Seitas Budistas do Brasil, por um ano.
Participa de encontros educacionais, interreligiosos e promove a Caminhada Zen, em parques públicos, com o objetivo de divulgação do princípio da não-violência e a criação de culturas de paz, justiça, cura da Terra e de todos os seres vivos.

Horizonte: O que é ser "Zen"? Depende de uma prática budista ou é mais uma atitude de vida?

Monja Coen: Zen Budismo é uma das tradições religiosas budistas. É a prática da vida em harmonia com a própria vida.

Horizonte: É apenas impressão ou muitos praticantes budistas brasileiros - independente da escola - encaram a prática muitas vezes como um "modismo", uma simples "reunião social" ou algo para motivo de status? Ocorre o mesmo no Oriente? Isso contribui de alguma forma para a divulgação do Budismo?

Monja Coen: Há muitas pessoas à procura de alguma coisa que não sabem exatamente o que é. Quem se aproxima é porque tem algum relacionamento. O Zen Budismo, o Budismo em geral, é muito pequeno no Brasil. Já no Oriente é a religião tradicional. O que convida brasileiros a se interessarem? A procura de si mesmos, a procura de um significado para vida-morte, a procura da verdade e do caminho.  Nem sempre as pessoas têm clareza sobre isso.

Horizonte: Atualmente o Budismo tem se aproxi-mado do Cristianismo através do diálogo inter-religioso. Que ações a comunidade budista brasileira tem realizado socialmente em prol dos menos afor-tunados? Perguntamos isso porque muitas pessoas nos relatam a impressão de que, pelo menos no Brasil, o Budismo tem sido uma "prática de elite". Isso reflete a realidade ou é uma falsa impressão?

Monja Coen: O Budismo é muito pequenino no Brasil. As tradições japonesas aqui no Brasil mantêm creches, escolas, centros assistenciais, hospitais, asilos para idosos - alguns em parceria com grupos cristãos, outros indepen-dentes. Nossa comunidade faz trabalho voluntário no Hospital Emílio Ribas, atendendo pacientes e cuidadores e também na Casa de Acolhida de Pinheiros, com crianças e adolescentes de rua. Definitivamente muito pouco, mas é o que podemos fazer agora.  Há muitas formas de trabalho social e uma delas é a de transformar as mentes discriminadoras e preconceituosas de elites que mantêm as diferenças sociais. Mais do que assistencialismo temos de transformar culturas e sociedades. Se prestar atenção, note que o Cristianismo chegou ao Brasil através dos imigrantes portugueses - uma elite na época.

Horizonte: A sra. já foi casada no Japão. Como foi isso? Por que algumas escolas budistas japonesas permitem o casamento a monges? Isso foi produto do reconhecimento de uma questão natural, como afirmam os monges da Terra Pura, já que, no passado, a maioria dos monges tinham relacionamentos às escondidas?

Monja Coen: A grande maioria dos monges são casados no Japão. Desde cerca de uns duzentos anos, quando em comum acordo com as lideranças políticas, as lideranças religiosas optaram por permitir o casamento dos monásticos. Foram várias as causas, uma delas a que você mencionou. Mas não foi a única.

Horizonte: Mesmo no Budismo há preconceito contra a mulher, especialmente quanto a esta ocupar os postos mais elevados na hierarquia? Essa postura não contradiz os ensinamentos do Buda?

Monja Coen: Sim. Qualquer discriminação ou precon-ceito é contrária aos ensinamentos de Buda. Entretanto, o próprio Senhor Buda discriminou contra as mulheres e fez oito regras especiais para que se tornassem monjas. Hoje, quando estudamos em profundidade o assunto, temos de verificar como era a sociedade local na época e percebemos o avanço de Xaquiamuni Buda ao permitir, mesmo que com regras especiais, que as mulheres se tornassem monásticas. Assim, podemos perceber que mesmo os seres mais elevados estão sujeitos à Lei da Causalidade e envolvidos pelos valores locais, regionais e culturais. A sabedoria con-siste em percebê-los e transformá-los. Para isso vivemos.

Horizonte: Seu trabalho atualmente é praticamente independente, correto? O lado bom disso não seria incentivar trabalhos mais independentes, uma forma de adaptação ao conflito e de assegurar que os ensinamentos sejam transmitidos sem prejuízo?

Monja Coen: Sem dúvida aprendemos com as várias experiências da vida. Devo admitir que tem sido muito estimulante trabalhar de maneira mais livre e independente.

Horizonte: O Budismo no Ocidente tem cerca de um século. Algumas adaptações já são sentidas e se fala num "budismo ocidental". Isso ocorreu no Tibete, que se adaptou à forma indiana de prática e a mesclou com sua religião xamânica original (o Bön). O "Budismo Ocidental" será uma mescla com o Cristianismo?

Monja Coen: Não sei. Espero que não. Espero que possamos manter as tradições separadas e nos respeitar mutuamente. O Budismo Brasileiro será mais arroz com feijão do que sopa de misô. Mas ainda faltam muitos e muitos anos para falarmos em Budismo brasileiro. Nos Estados Unidos já se fala em Budismo Americano, com características definitivamente diferentes das orientais. Mas aqui no Brasil ainda engatinhamos. O que acontecerá?

Horizonte: A sra. vê a Internet como um dos meios adequados para divulgação do Budismo neste mundo globalizado? Isso pode contribuir para uma união maior entre as diversas escolas budistas?

Monja Coen: Sim.

Horizonte: A sra. pertence a alguns movimentos que buscam a união entre as religiões. Claro que uma "união doutrinária" é difícil, já que cada uma tem uma estrutura própria. Mas a união de propósitos - o bem-estar da humanidade e do planeta como um todo - parece viável. Como a sra. vê essa tendência?

Monja Coen: A Iniciativa das Religiões Unidas tem o propósito de criar culturas de paz, justiça e cura da Terra. Não é uma proposta fácil de se realizar. Mas acredito que a transformação de uma sociedade violenta e corrupta em uma sociedade mais justa e não violenta depende também do respeito e compreensão entre as religiões do mundo.

Horizonte: Agradecemos muito sua gentileza em conceder esta entrevista a "Horizonte -Leitura Holística". Gostaríamos que deixasse uma mensagem para nossos leitores, se possível sobre o que cada um, independente da prática religiosa, pode fazer para melhorar o planeta, as condições ambientais, e diminuir a violência, o materialismo e o sofrimento geral.

Monja Coen: Perceber que somos a vida da Terra. Não viemos nem iremos a nenhum outro lugar. Deixamos marcas com nossa existência. Visíveis e invisíveis. Que possamos deixar marcas de amor e ternura, compaixão e sabedoria para que todos os seres se beneficiem e todos possam viver em harmonia e fartura. É cuidando que somos cuidadas. É servindo que somos servidas. É fazendo o bem que nos beneficiamos. Interligados, interconectados com toda a vida do universo. Tudo sempre retorna a nós mesmos. Somos a vida. Mãos em prece. Monja Coen.

 

Fundamentalismo X Universalismo – Rumos do Terceiro Milênio

Paulo Stekel



Religião X Espiritualidade

Nunca assuntos como religião e espiritualidade foram tão tratados e retratados na grande mídia como atualmente. Não se trata mais de pauta exclusiva de mídias religiosas. Contudo, essa maior visibilidade não tem, necessariamente, contribuído para desfazer velhos equívocos e preconceitos relativos ao que seja a espiritualidade.

Primeiramente, “religião” e “espiritualidade” não são a mesma coisa. Há um consenso quase geral de que “religião” se refere a uma prática coletiva, baseada numa crença institucionalizada, enquanto “espiritualidade” se refere aos sentimentos e às abordagens individuais com relação ao transcendente e subjetivo, de certa forma “independentes” do institucionalizado. A religião seria como “(co)ordenamos” o transcendente numa “norma” coletiva, para que nos entendamos uns aos outros como fiéis e nos identifiquemos como grupo; a espiritualidade seria como “sentimos” o transcendente em nosso íntimo, como o vivenciamos, independente de qualquer norma coletiva fundamentalmente estabelecida. A experiência mística tem a ver, então, mais com espiritualidade do que com religião, por ser mais aberta e destituída de “norma”, sem a qual a religião mesma não se mantém organizada. Parece o velho (e bíblico) embate entre o sacerdote (religião – norma) e o profeta ou místico (espiritualidade – espontânea, transcendental, ligada a Estados Ampliados de Consciência).

No campo científico podemos dizer que o que concerne à religião foi absorvido pela Religião Comparada e pela História das Religiões. O que concerne à espiritualidade foi absorvido pela Psicologia, sobretudo a Transpessoal. Então, a religião é um campo mais objetivo (fatos), enquanto a espiritualidade é um campo puramente subjetivo (estados de consciência). Podemos vislumbrar uma complementaridade aí. Mas há, também, pontos de conflito. Da religião nasce o conceito de “fundamentalismo”; da espiritualidade nasce o conceito de “universalismo”. Para qual dos dois caminha a visão religiosa/espiritual da humanidade?

Situando o “Fundamentalismo Religioso”

O termo “fundamentalismo” se refe a movimentos (religiosos, ideológicos, políticos, econômicos, étnicos, etc.) cujos adeptos aderem de modo muito estrito aos princípios fundamentais. De modo pejorativo, o termo muitas vezes se refere a grupos religiosos intransigentes quanto aos princípios de suas fés ou a movimentos étnicos extremistas com motivações ou inspirações apenas nominalmente religiosas.

Em resumo, o fundamentalista religioso acredita em seus dogmas (a norma) como verdade absoluta (algo subjetivo, terreno do Transcendental, não da norma!), indiscutível, recusando-se a qualquer diálogo no qual tenha que ceder. Desejando voltar ao que considera “princípios fundamentais” ou vigentes na fundação de sua religião, acaba por tornar-se um dissidente do grupo maior, resistindo a identificar-se com este, por julgar ter o mesmo se desviado da “fé original” por quaisquer modernizações, concessões, abolição de normas meramente culturais ou adequações ritualísticas simplificantes mais recentes. Ou seja, o fundamentalismo é claramente anti-modernista, dogmatista e fanático! Aliás, “fanatismo”, “intolerância” e “extremismo” são termos geralmente associados ao fundamentalismo religioso, e parece que lhe caem bem, uma vez que, enquanto o mundo caminha para o diálogo inter-religioso, o ecumenismo, a liberdade de expressão religiosa e a transreligiosidade, os fundamentalistas se apegam a questões menores com veemente intransigência e ignorância, crendo em princípios religiosos “infalíveis” e historicamente precisos.
O fundamentalismo religioso sempre existiu em praticamente todas as religiões institucionalizadas – ele é a “própria força de coerção da norma”, força por vezes violenta ao extremo. Mas, a nosso ver, a norma não é a verdadeira “religiosidade”, termo por vezes utilizado como sinônimo de “espiritualidade”. A verdadeira vivência religiosa/espiritual é interna e não depende de uma relação normatizada de grupo, ainda que tal relação possa ser útil para o processo subjetivo.

Por vezes os fundamentalistas religiosos chegam a constituir milícias para lutar “em nome da fé”, ainda que haja outros interesses implícitos nesta expressão e a “fé” acabe sendo responsabilizada por sua insanidade. Há correntes fundamentalistas entre os adeptos do Cristianismo (lembre-se das Cruzadas), do Islamismo (Al-Qaeda e congêneres), do Judaísmo (os judeus haredi, ultra-ortodoxos representados pelo grupo Neturei Karta), do Protestantismo (especialmente nos EUA), etc.

Os próprios fundamentalistas não gostam do termo. Nem mesmo os fundamentalistas cristãos, que o criaram. A idéia de fundamentalismo surgiu entre os protestantes dos EUA, no início do Século XX, com a publicação, em Los Angeles, do livro “Os Fundamentos”, patrocinado por dois empresários (Lyman e Milton Stewart) e escrito por eruditos evangélicos da época. No começo, os fundamentalistas cristãos se chamavam a si mesmos desta forma, e com orgulho. Mas, quando, a partir de 1980, a mídia começou a descrever facções islâmicas como o Hezbollah como sendo fundamentalistas (conflitos do Líbano) e o termo ganhou conotação negativa, os fundamentalistas cristãos mudaram de abordagem. Passaram a considerar apenas o “seu” fundamentalismo como positivo, sendo os demais, negativos.

Nos movimentos islâmicos, não é diferente. Mesmo os grupos que aceitam ser considerados fundamentalistas repudiam o ser rotulados junto com facções que usam seqüestro, assassinato e atos terroristas para alcançar seus objetivos. Isso deveria ser suficiente para nos mostrar que fundamentalismo não tem, necessariamente, nada a ver com terrorismo. Contudo, isso não está claro para certos grupos de poder... A paranóia da equivocada associação “necessária” entre fundamentalismo e terrorismo está aí e tem acarretado sérias conseqüências para todos nós.

O Livro de Estilos da Associated Press recomenda que o termo “fundamentalista” não seja usado para qualquer grupo que não aplica o termo a si mesmo. Assim, os “fundamentalistas cristãos” poderiam ser referidos desta forma, mas os grupos islâmicos, não. Mas a editoria da maior parte das mídias não segue esta recomendação, e o termo vai ganhando conotação mais ampla e diversa da original (resignificação), o que, aliás, é um fenômeno lingüístico natural e bem conhecido dos estudiosos. No Manual de Redação da Folha de São Paulo há a ressalva: “ser fundamentalista não implica ter atitudes extremas. Quem o faz é denominado extremista e não fundamentalista.”

No Cristianismo, o fundamentalismo foi uma reação ao modernismo que se espalhava nas igrejas dos EUA no início do Século XX. Sua declaração de fé simplificada inclui doutrinas consideradas fundamentais do Evangelho (daí o nome “fundamentalismo”) como: a inerrância, infalibilidade, suficiência, inspiração e preservação da Bíblia; nascimento virginal, divindade, expiação vicária, ressurrreição corpórea e segunda vinda de Jesus Cristo; premilenismo; historicidade dos milagres; separação dos apóstatas e dos ecumênicos (?).

Os fundamentalistas islâmicos se baseiam numa espécie de luta ideológico-religiosa (não necessariamente com violência) contra a cultura ocidental judaico-cristã, que julgam suprimir o Islam autêntico que, para eles, seria a submissão ao modo de vida prescrito na determinação divina contida na Charia (a lei islâmica).

No Judaísmo os fundamentalistas estão representados pelos judeus Haredi, que se julgam os “verdadeiros judeus da Torah”. Eles se alimentam, se vestem e vivem estritamente no modo religioso que consideram fundamental. O grupo Neturei Karta é um bom exemplo.

Há ainda um crescente fundamentalismo hinduísta, no qual as mulheres tem sido as maiores vítimas – registre-se o dowry death (morte por causa do dote) e a vida miserável e sem direitos que as mulheres de religião hinduísta vivem.

Os grupos fundamentalistas em geral reforçam a existência de um agudo limite entre uma “visão sagrada” da vida e a do “mundo secular”, de natureza profana. Há uma razão histórica para isso: na Antigüidade, e ainda em sociedades tribais, não há separação entre a vida comum e a vida sagrada. Esse fenômeno de separação entre sagrado e profano é relativamente moderno, pós-Revolução Francesa. Mesmo em países muito desenvolvidos o laicismo encontra resistência em alguns setores da sociedade, devido a questões religiosas consideradas “intocáveis” (fundamentais!). Antes do nascimento do laicismo, quando o sagrado abarcada toda a vida humana em sociedade, a condição laica era o conceito estranho e incômodo. Atualmente, as últimas resistências da antiga norma é que se tornaram o fundamentalismo tão comentado.

Universalismo: o outro extremo?

A idéia de universalidade tem mais a ver com livre expressão religiosa e espiritualidade do que com norma ou dogma religioso. Neste sentido podemos falar de uma força antagônica ao fundamentalismo, de caráter mundial e que se expande a cada dia, à qual comumente se chama “universalismo”. Suas características são diametralmente opostas às do fundamentalismo religioso.

Universalismo é um termo com várias acepções, dependendo da corrente de pensamento. Na verdade, referimo-nos aqui ao que também se conhece no Brasil por “Espiritualismo Universalista”. Trata-se de uma corrente de pensamento não-religiosa (não enfatiza a “norma”, o dogma) e anti-materialista, que combina espiritualidade e universalismo. Tem relações com o espiritualismo laico e com o ecumenismo, de onde parece partir em sua origem.

A ideologia do Espiritualismo Universalista, daqui por diante referido apenas como “Universalismo”, se baseia em teorias orientais como o carma e a reencarnação, e na idéia de que o indivíduo, ao invés de aderir com exclusividade a qualquer credo, sistema, doutrina, fé, religião, instituição, mestre ou movimento, deve fazer sua síntese pessoal de tudo o que se relaciona à espiritualidade – uma síntese de Ciência, Filosofia e Religião, no entender da mística russa Helena Blavatsky (1831-1891), fundadora da Sociedade Teosófica, cujas idéias parecem ser a origem do universalismo.

Os princípios do Universalismo são o ecumenismo, o pluralismo, a visão holística, a multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade, a interdisciplinaridade e uma espécie de cidadania planetária e cósmica. Como se pode ver, o Universalismo flerta com a Psicologia Transpessoal, que se encarrega de fazer o seu “lobby científico”, ou seja, tenta fazer com que a Ciência acadêmica veja a espiritualidade como assunto sério e digno de ser estudado em moldes científicos.

Como se pode perceber, opondo-se a posturas sectárias, exclusivistas, fanáticas e maniqueístas e valorizando a liberdade de expressão, o discernimento e a dialética, o Universalismo se opõe claramente a qualquer visão fundamentalista que pregue uma verdade absoluta dentro de qualquer doutrina particular. Ninguém detém a posse de qualquer verdade absoluta ou relativa. O que existe é o autogoverno do indivíduo em consonância com a ética universal (o “anarquismo cósmico” de Huberto Rohden) buscando o “seu” caminho próprio, sem o comando de terceiros ou de instituições sacerdotais.

Entre os pressupostos mais importantes do Universalismo, temos: as religiões são criações humanas e não imposições divinas; nenhuma corrente de pensamento pode monopolizar as verdades relativas ou absolutas; há muitos caminhos para se atingir a realização espiritual, dentro e fora das religiões (religião E espiritualidade!); a ética (amor incondicional, fraternidade) é mais importante que a fé escolhida; não há alguém que possa ser considerado o “melhor” guru ou mestre espiritual da humanidade; tudo o que contribui para o esclarecimento espiritual e da consciência é válido e relevante, merecendo respeito e avaliação sem preconceito.

No Brasil, há muitos pesquisadores e religiosos considerados universalistas: Huberto Rohden (filósofo de Santa Catarina, ideólogo da Filosofia Univérsica), Osvaldo Polidoro (teólogo paulista, propositor do Divinismo), Hercílio Maes (advogado, autor de obras psicografadas atribuídas ao espírito de Ramatis, que abriram novos horizontes ao Espiritismo no Brasil), Alziro Zarur (radialista, fundador da LBV – Legião da Boa Vontade), José Hermógenes (praticante de Yoga bastante inserido em levar espiritualidade a setores esquecidos da sociedade), Waldo Vieira (médico e dentista, criador da Conscienciologia e especialista em projeção astral), entre outros.

Fora do Brasil há inúmeros representantes do Universalismo, alguns apenas de modo relativo e outros totalmente imersos nele: Pietro Ubaldi (espiritualista italiano), Ralph Waldo Emerson (filósofo dos EUA), Carl Gustav Jung (psiquiatra suíço), Ken Wilber (psicólogo transpessoal dos EUA), Khalil Gibran (poeta libanês-americano), além de três gurus indianos muito apreciados no Ocidente – Swami Vivekananda, Paramahansa Yogananda e Ramakrishna. A Sociedade Teosófica, por sua proposta, bem como os principais autores ligados a ela desde sua fundação (1875), também pode ser considerada como pertencendo ao movimento universalista.

No Brasil, os principais adeptos do Universalismo são pessoas que militam em meio religioso reencarnacionista e têm formação cultural e ideológica influenciada por correntes como espiritismo, hinduísmo, budismo, umbanda, teosofia, conscienciologia e esoterismo. Aliás, apenas para constar, a única religião genuinamente brasileira, a Umbanda, consegue ter em sua doutrina e ritualística elementos provenientes de praticamente todas estas correntes citadas.

Visões em rota de colisão?

Não resta dúvida, portanto, da visão antagônica existente entre fundamentalistas e universalistas. Os fundamentalistas representam o último suspiro da “religião” (o processo coletivo) como instituição desatualizada, preconceituosa, radical, intolerante e opressora; os universalistas representam o primeiro alento da “espiritualidade” (o processo individual) como uma proposta emergente de natureza inserida socialmente, aberta ao diálogo, tolerante e libertadora. Antevemos um embate ideológico entre as duas correntes para muito breve. Não se trata de profecia, mas de lógica. Se ambas as visões continuarem a se expandir, haverá um choque em pouco tempo.

Algumas práticas religiosas parecem favorecer a expansão de visões universalistas, enquanto outras as repudiam e chegam até a fomentar visões fundamentalistas. As correntes citadas anteriormente (espiritismo, umbanda, teosofia, etc.), além da Fé Baha'í, Seicho-No-Ie e práticas similares, parecem facilitar expressões universalistas; o judaísmo e o cristianismo católico parecem ser neutros com relação a tais expressões; mas religiões, como o protestantismo evangélico (neo-pentecostal), o islamismo, o zoroastrismo e correntes ortodoxas do hinduísmo, que nem sequer permitem conversões a outras religiões sem diversos tipos de obstáculos e “penalidades” (“divinas” e humanas), fomentam visões fundamentalistas com muita freqüência.

À medida que o mundo evolui, que a tecnologia inova, que a sociedade se modifica, que as questões sociais, ambientais e de direitos humanos se tornam a ordem do dia, as visões universalistas, destituídas de preconceitos, tendem a ser bem aceitas por boa parcela da humanidade, pois seus meios são o amor incondicional e a não-violência. Mas visões fundamentalistas, geralmente preconceituosas, intransigentes, anti-tecnológicas, pouco interessadas em macro-mudanças sociais e muitas vezes responsáveis por severas privações de direitos humanos (de mulheres, homossexuais, doentes mentais, minorias étnicas e religiosas), tendem a causar tumulto e violência no meio social, pois suas armas são a coerção e o amedrontamento.

Quando visões fundamentalistas são as mais influentes numa nação, como ocorre em algumas repúblicas islâmicas e em certas regiões indianas administradas por setores hinduístas ortodoxos, os violentos atos coercitivos de tais visões são minimizados, apoiados e até patrocinados pelo governo! Os primeiros a sofrer, são as mulheres, seguindo-se os homossexuais e os membros de outras religiões. O ataque a qualquer religião a partir do Estado só serve para fazer despontar visões fundamentalistas muito perigosas. Os fundamentalistas, por outro lado, dizem que a visão universalista desagrega a religião. Isso não é verdade. A religião tem desagregado a si mesma desde muito tempo, devido a seu radicalismo e negação em seguir o rumo dos tempos, que é o rumo ditado pela consciência coletiva humana!

Num mundo universalista cada indivíduo teria a plena liberdade de seguir qualquer religião que desejasse, ou nenhuma. E, num mundo fundamentalista? Se fosse um mundo “plurifundamentalista” (com várias visões fundamentalistas, em seus respectivos nichos), seria uma batalha sem fim. Se fosse “monofundamentalista” (apenas uma visão), estaríamos irremediavelmente perdidos! Apenas uma visão universalista pode garantir a liberdade humana para o Terceiro Milênio. Não se trata de “desagregar” a religião, mas, pelo contrário, recolocá-la em seu devido lugar na alma humana, como o veículo de “reintegração”, de “religação” do Ser com sua Consciência Universal. Esta tendência já é marcante, pelo menos no continente americano inteiro e partes da Europa, e não há como voltar atrás. Na África e Ásia há mais resistência, pela influência de religiões tribais, de religiões em expansão (como o Islamismo) e de visões culturais equivocadas milenares.

Ironicamente, a Ásia proveu o Ocidente do material que serviu de base ao Universalismo (carma, reencarnação, etc.); na verdade, as religiões asiáticas tiveram participação indireta, por influência mesmo. Contudo, em seu meio, tais religiões continuaram enclausuradas em seu radicalismo. Apenas o Budismo parece ter quebrado esse padrão, especialmente a partir da invasão do Tibete (década de 1950). O Hinduísmo ainda não o fez de fato, apesar de estar penetrando no continente americano com certa força e sendo obrigado a fazer algumas concessões ritualísticas.

Por outro lado, o Ocidente parece ter agora condições de prover o Oriente de uma visão de síntese dos dois mundos: o Universalismo. O Oriente resiste mais a ela do que o Ocidente resistiu às crenças orientais no Século XIX. Isso porque acirram-se os fundamentalismos.

A defesa de um mundo laico e ao mesmo tempo universalista

Ainda que todo religioso e mesmo um universalista possa manifestar o desejo de que o mundo fosse mais ligado ao sagrado no nível institucional e governamental, a História mostra que essa pode ser uma experiência dolorosa. Isso seria não apenas um “fundamentalismo de Estado”, mas um abismante “fundamentalismo universal”, uma contradição evidente. Isso ocorre quando tornamos regra o aspecto “norma” da espiritualidade (o coletivo, a religião instituída) e não o seu aspecto “subjetivo-transcendental” (o individual, a “religiosidade”).
Um mundo laico não se opõe de forma alguma ao Universalismo, já que o último enfatiza a prática individual e não o proselitismo. Um mundo laico, todavia, se opõe ao Fundamentalismo, porque este último prega um proselitismo vergonhoso e agressivo, que interfere em questões sociais importantes, como os direitos humanos. O Universalismo é amigo dos direitos humanos e do laicismo do Estado; o Fundamentalismo não defende direitos humanos que se relacionem com questões de fé e não vê o laicismo com bons olhos.

Mas há ainda que diferenciar “laicismo” de “laicidade”, para efeito de nossa análise.

O “laicismo” é uma doutrina filosófica que defende e promove a separação do Estado das igrejas e das comunidades religiosas, assim como a neutralidade do mesmo em matéria de religião. Não se trata de ateísmo ou de agnosticismo, apenas de “separação” das esferas “Estado” e “religião”.

A “laicidade” é a forma institucional que toma nas sociedades democráticas a relação política entre o cidadão e o Estado, e entre os próprios cidadãos. O Estado não exerce qualquer poder religioso e a religião não exerce qualquer poder político. Há uma separação entre o domínio público (onde se exerce a cidadania) e o domínio privado (onde se exercem as liberdades individuais e coexistem as diferenças biológicas, sociais e culturais). O espaço público é indivisível: ninguém, cidadão ou grupo, pode impôr suas convicções a outros. A Laicidade garante a todos o direito de adotar uma convicção, de mudar de convicção ou de não adotar nenhuma. Não é “irreligião”, mas indiferente e incompetente em matéria de doutrinas e crenças, o Estado laico só se ocupa do que releva do interesse público. Assim, garante a liberdade religiosa e não fomenta fundamentalismos nem fornece privilégios a determinadas correntes religiosas. Mesmo a tolerância está excluída do Estado laico, pois as leis valem para todos, maioria e minorias.

Neste contexto mais específico de “laicidade” ainda podemos afirmar que não há qualquer incompatibilidade entre um Estado ou mesmo um mundo laico e uma visão de Universalismo. Afinal, uma visão laica cuida do interesse público, coletivo, enquanto o Universalismo cuida do indivíduo espiritual. Mas a religião, que também cuida do coletivo, esta sim, pode entrar em choque com um Estado ou mundo laico. Isso porque o foco é o mesmo: o interesse coletivo. Historicamente, isso tem levado a confrontos.

Finalizando, encontramos, então, relações entre a religião institucionalizada e o fundamentalismo, mas também entre a laicidade e o universalismo. A religião institucionalizada, ao recusar-se a reavaliações e adaptações, fomenta visões fundamentalistas em seu meio e se opõe ao Estado laico, que as rechaça, por serem intolerantes e excludentes. O Estado laico, por sua vez, fomenta visões amplas como o Universalismo, seja por afinidade de princípios, como a igualdade, a inclusão, o bem comum e a livre expressão, seja por não encontrar o segundo qualquer resistência por parte do Estado laico.

Mas a religião institucionalizada, mesmo que não-fundamentalista, luta para obter do Estado laico privilégios em detrimento de outras fés. Vemos isso no Brasil, onde a Igreja Católica faz um ferrenho lobby para obter recursos e patrocínios do Estado para suas procissões, visitas do Sumo Pontífice e eventos pastorais. Nos EUA, são as igrejas protestantes. No mundo muçulmano, que não é laico, esse “patrocínio” é oficializado. No antigo Tibete, que também não era laico, o apoio do governo ao budismo vajrayana era oficial, mas havia respeito pelas religiões hinduísta e islâmica presentes no país, e sem conflitos. E, ainda é assim no Governo Tibetano no Exílio (o próprio Dalai Lama tem enfatizado uma certa universalidade espiritual em seus discursos). Mas essa atitude é um tanto rara e se deve mais ao espírito tolerante, compreensivo e compassivo do ensinamento budista. Além do mais, os budistas não têm dificuldades em adaptar-se culturalmente, o que diminui o risco de se confundir prática cultural com crença ou dogma “fundamental”, uma das causas do fundamentalismo.

O perigoso equívoco: fundamentalismo = terrorismo

Podemos apontar vários culpados pelo grande e explosivo equívoco de que o fundamentalismo está sempre associado ao terrorismo: a mídia, os políticos, a opinião pública. Mas poucos são os religiosos realmente engajados em desfazê-lo. Quando o tentam, sua atitude parece modesta e tímida. No meio islâmico isso é evidente. Os poucos líderes religiosos que falam de modo enfático sobre o equívoco parecem ser, a mais das vezes, figuras exóticas de opinião esdrúxula e não “a voz do Islã”. Por que? Porque não são a voz do Islã. Se fossem, talvez obtivessem melhor resultado. O Islã, como qualquer outra religião, é seccionado. Possui muitas facções e os líderes só têm autoridade em círculos relativamente diminutos. Não há um “papa islâmico”, nem mesmo um líder carismático moderno capaz de congregar todas as facções. Considerando a situação atual, talvez um tal líder benevolente e carismático fosse desejável...

A carência de líderes moderados no Islã tem contribuído para o aumento de atitudes extremas perpetradas por fiéis islâmicos que se ligam a organizações que se dizem pertencentes ao Islã mas que, na verdade, são apenas grupos políticos de métodos terroristas. O terrorismo em si não tem nada a ver com o fundamentalismo, seja religioso ou não. Terrorismo é, no mínimo, uma forma extrema de forçar o outro lado a negociar. E, a negociação nem sempre envolve religião (lembre-se os separatistas bascos, por exemplo); se a envolve, nem sempre tem a ver com o Islã (lembre-se da luta entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte). É bom não confundir as coisas, para evitar juízos depreciativos e perigosos, fomentadores de discriminação religiosa, xenofobia e racismo.

A proibição das conversões no Islã também fomentam fundamentalismos. O islamismo se defende das conversões através da condenação à morte ou da prisão do apóstata. Em muitos países muçulmanos, mesmo os laicos, o direito de propagar o Islã é um direito natural e não há necessidade de lei; já, o direito de propagar uma outra religião é considerado, de fato ou por lei, inaceitável. Ou seja, dois pesos e duas medidas.

A propaganda islâmica é um dever do Estado, mas a propaganda cristã (chamada tabshir, lit. “evangelização”, em árabe) é proibida por lei. A Arábia Saudita é tão radical neste ponto que até mesmo o site da Saudi Arab Airlines traz escrito com clareza que em seus vôos são proibidas bíblias, crucifixos e qualquer sinal religioso não-islâmico. Ou seja, se você for à Arábia Saudita, só poderá manifestar sua religiosidade se for muçulmano...

“A verdadeira e única igreja...”

A propósito, é bom lembrar que o embate mais violento do Século XXI será o das religiões, como foi profetizado por André Malraux, ministro da Cultura do presidente francês Charles de Gaule, ao dizer que “o Século XX é das ideologias, mas o século XXI será das religiões”.

O embate moderno revive o fanatismo de antanho. O exemplo mais recente se deu quando, no dia 10 de Julho último, foi aberto ao público o documento do Vaticano intitulado “Respostas a questões relativas a alguns aspectos da doutrina sobre a igreja”, no qual se reafirma o dogma de que “a Igreja Católica é a verdadeira e única igreja de Cristo”, reforçando que as igrejas protestantes não devem ser consideradas como igrejas (“...não podem ser consideradas igrejas, dado que não contemplam o sacerdócio e não adotam a eucaristia, que simboliza a comunhão com Cristo”). Mas, sem querer ser mal-intencionado na pergunta, teologicamente a verdadeira “igreja” não é invisível, uma vez que o próprio Cristo não fundou nenhuma instituição? Desconsidera-se o fato de que, nos primeiros séculos da era cristã cada igreja crescia e se desenvolvia em completa autonomia em relação às demais? O documento traz a posição da Congregação para a Doutrina da Fé que foi ratificada pelo Papa Bento XVI, mas foi considerada por muitos religiosos como “ofensiva e danosa” à conversação ecumênica e interreligiosa. Realmente é danosa, pois trata-se de um retrocesso à Idade Média e equipara o radicalismo católico ao radicalismo islâmico, ou seja, é pólvora pura! No tocante ao ecumenismo, a Igreja Católica tem decidido com quem dialoga. Tanto que, na reunião ecumênica do Papa Bento XVI quando de sua visita ao Brasil, neste ano, não estavam incluídos representantes do candomblé e dos cultos neopentecostais. Caminhamos, então, para o “pseudo-ecumenismo”?

Ciência E Espiritualidade X Religião

Isto posto, não nos admira que a Ciência tem se aproximado mais da espiritualidade como um possível campo de pesquisa do que da religião institucionalizada. Desde os tempos de Freud e Jung, e mesmo antes, a Ciência flertou com a religião, mas logo a largou de mão, por concluir que esta última tinha mais conseqüências opressivas sobre o indivíduo do que se poderia imaginar, isto é, o efeito da “política institucional religiosa”, no entender de Fernando Savater. Com o advento da proposta transpessoal, a partir de Abraham Maslow, a Ciência voltou-se para a espiritualidade, por ter mais a ver com o indivíduo, que é o foco da Psicologia. Ao focar no indivíduo, a Ciência – e, especialmente, a Psicologia – encontrou algo de bom no mundo do subjetivo-espiritual. A religião passou a ser vista, então, pela Ciência, como a “norma coletiva”, e a espiritualidade, como “a fonte” de todo o transcendental.

Nos últimos dez ou cinco anos multiplicam-se pelo mundo Ocidental as jornadas, congressos, cursos e seminários científicos abordando a espiritualidade, especialmente no âmbito da Medicina, da Psicologia e da História. Brasil e EUA são os pioneiros, seguidos de modo mais modesto pela Europa. Esse diálogo entre Ciência e espiritualidade é salutar para o Universalismo, pois reforça a idéia de que a verdade não pertence a uma única religião ou doutrina. Para os fundamentalistas, esse diálogo é pérfido, por demonstrar exatamente isso...

Parece haver certa polarização religiosa da população mundial hoje: há cerca de 1,7 bilhões de cristãos e cerca de 1,3 bilhões de muçulmanos. O terceiro maior grupo é o dos que não professam qualquer religião - ateus, agnósticos, naturalistas ou bright e mesmo os “sem religião, mas com espiritualidade”, como muitos se definem. O terceiro grupo poderia, no futuro, se aproximar de uma visão universalista sem problemas. Os dois primeiros, correm o risco de caminhar para acirrados fundamentalismos e conflitos visando impôr a influência de suas respectivas políticas institucionais sobre determinadas sociedades ou grupos étnicos. Seria lastimável se isso acontecesse. Devemos enfatizar e apoiar atitudes inclusivas e promotoras do bem estar humano integral, não atitudes exclusivas, fanáticas, pretensiosas e agressivas, em qualquer medida que seja.

 

A Ciência se aproxima da Espiritualidade ?

uma análise crítica do I Congresso Brasileiro de Espiritualidade e Religiosidade na Saúde Mental – Parte 1

Paulo Stekel



Promovido pelo CISAME (Centro Interdisciplicinar de Saúde Mental) e pelo ProntoPsiquiatria (Centro Psiquiátrico de Pronto Atendimento), que atuam junto à Clínica São José, em Porto Alegre (RS), o I Congresso Brasileiro de Espiritualidade e Religiosidade na Saúde Mental foi uma experiência singular e reveladora. Realizado entre 20 e 22 de setembro último, contou com a presença de dezenas de conferencistas, entre eles muitos cientistas, mas também alguns representantes religiosos.
A pergunta-título desta matéria não é despropositada. Realmente ficamos na dúvida se a aproximação tão falada entre ciência e espiritualidade se constitui em algo palpável ou ainda engatinha em meio a preconceitos e despreparo dos cientistas para tratar do assunto. Parece-nos que a segunda hipótese é a verdadeira. Mas é louvável a idéia de uma aproximação, e algumas conquistas estão aparecendo.

Já no início do evento, em uma palestra pública intitulada "Transtorno de Pânico e Religiosidade", Cláudia Wachleski (UFRGS) mostrava que:
“(...)pensamentos nocivos e emoções descontroladas provocam estados ansiosos e depressivos. (...) Religiosidade é a ligação com uma força maior que está dentro de nós, com a espiritualidade interior pertencente ao ser humano. (...) A Psicoterapia pode incorporar a exploração dos aspectos espiritual/religioso mais facilmente, ajudando nas questões de saúde mental."

Durante a Conferência 1, Paulo Dalgalarrondo, prof. Titular de Psicopatologia da UNICAMP, apresentou um panorama das relações entre espiritualidade e saúde. Sua definição de “espiritualidade”, que se diferencia da religião organizada e mesmo da “religiosidade” foi como sendo:
“(...) uma dimensão mais pessoal e existencial; relativamente independente de formas socialmente organizadas de religiosidade; relação com um poder ou força superior; crescimento em todo o mundo de pessoas que se definem como sem religião, mas com espiritualidade. (...) É algo mais emocional e independente.”

Dalgalarrondo apresentou, ainda, um dado interessante: em quase todas as culturas, as mulheres são mais religiosas que os homens, mas são estes que mandam. No séc. XX, se pensava que a causa era o fato das mulheres serem mais socializadas para a religião. Hoje, se pensa no “comportamente de risco”, que é maior entre os homens e desestimula a busca espiritual. Os homens homossexuais são mais religiosos que os heterossexuais, mas as mulheres homossexuais são menos religiosas que as heterossexuais e mesmo que os homens heterossexuais. Não são dados conclusivos, é claro, mas devem ser considerados.
Importante foi a diferença entre “fenômenos religiosos” e “fenômenos psicopatológicos", feita por Dalgalarrondo. Enquanto os fenômenos religiosos têm como características principais conteúdos compartilhados, de natureza visual, que alargam a vida do indivíduo, fazendo-o sentir-se “agindo”, os psicopatológicos são bizarros, idiossincráticos, causam alucinações auditivas, desintegram a personalidade e o indivíduo sente-se passivo na experiência. Poucos dados contradizem o fato de que a prática espiritual diminui a incidência no uso de drogas, álcool e depressão, melhorando a saúde mental.

A única coisa que parece gritar a nossos ouvidos é que, quando cientistas falam sobre espiritualidade, mesmo lhe dando algum crédito, temos a sensação de que dizem baixinho: “É uma ilusão que faz bem à saúde!” Esta foi, pelo menos, a opinião passada diretamente a nós por diversos participantes do congresso, alguns deles, psicólogos com idéias nitidamente espiritualistas.

Letícia Alminhana (UFJF/MG) falou sobre os efeitos das técnicas mente-corpo no tratamento do câncer. Explicou o que seria a psiconeuroimunologia, uma ciência envolvendo a consciência (psique), o sistema nervoso e o sistema imunológico (glandular). Em suas pesquisas, tem usado técnicas de relaxamento durante sessões de quimioterapia, além de visualização criativa (imagens livres), meditação, respiração abdominal, postura relaxada, mantras e focalização da atenção.

Sérgio Lopes (AME/RS), ao falar dos chamados Estados Alterados de Consciência, propõe que se os chame Estados Ampliados de Consciência, por representarem exatamente situações de aumento de consciência. Tais estados são de 4 tipos: Beta (12-20 ciclos/seg, vigília), Alfa (8-12 ciclos/seg, meditação e relaxamento), Theta (3-8 ciclos/seg, sono) e Deltha (menos de 3 ciclos/seg, pré-coma, catalepsia, meditação dos monges budistas na qual há um consumo sutil de energia).
Para Lopes, os estados ampliados de consciência têm as seguintes características: inefabilidade (são sem uma explicação de ordem racional), qualidade noética (como revelações, cheias de significado simbólico e importância), transitoriedade (não podem ser mantidos por muito tempo, como o estado de consciência ordinário) e passividade (sensação de que a própria vontade está adormecida e agarrada por uma força superior).


[No início do evento, foi apresentada a esquete "Estressado, Estressadíssimo, Estressadérrimo", pelo Grupo de Teatro Janela Aberta]

Na opinião de Wellington Zangari (USP), ainda ocorre em algumas universidades do Brasil um cerceamento do debate sobre espiritualidade nos cursos de Psicologia. Por isso defendeu a heterodoxia em Psicologia. Noticiou que o CAPS, o CNPq e a FAPESP já dão bolsas de pesquisa na área de estados alterados de consciência, mas que o Brasil está atrasado na pesquisa, comparado aos EUA, onde se tem escrito muito sobre uma “Psicologia Anomalística”, que estuda experiências alegadamente anômalas (paranormais), isto é, fenômenos raros. No Brasil, essa pesquisa é praticamente desconhecida.
Zangari foi um dos poucos cientistas que, durante o congresso teve a coragem de se fazer a seguinte pergunta (e respondê-la):
“E, se os processos anômalos de interação entre o ser humano e o meio existirem [isto é, não forem a mera “ilusão boa para a saúde”, como dissemos há pouco]? Então, nossa visão tradicional da separabilidade entre um indivíduo e outro terá que ser revista.”

Carlos Durgante (CISAME/RS) afirmou que espírito, mente e corpo estão se tornando objeto de estudo das neurociências. Na verdade, tais pesquisas iniciaram por volta de 1970, com o antropólogo Eugene D'Aquilli (EUA) e sua Neuroteologia, que procura explicar como a mente funciona para criar as experiências religiosas.
Segundo Durgante, pesquisas feitas com monges tibetanos, freiras católicas e evangélicos, demonstram a ativação do circuito cortical fronto-parietal e estruturas do lobo temporal quando se tem uma experiência religiosa. A meditação reorganizaria o cérebro, permitindo controlar e modificar as reações automáticas. Dessa forma, as experiências religiosas ajudariam na imunidade, na circulação sangüínea e na saúde em geral.
Por fim, Durgante deixou a pergunta: “Estaríamos todos nós predispostos a sentir uma idéia da divindade a partir dos nossos processos cerebrais?” Sua resposta criteriosa: “De qualquer forma, não se pode afirmar que 'Deus' está no cérebro.” Contudo, não faltam cientistas materialistas tentando localizar Deus e a sede de toda a experiência religiosa/espiritual nos circuitos cerebrais. Confundem, então, o veículo com o motorista e ainda se consideram cientistas...

Continuando essa linha de raciocínio, Júlio Peres (USP) explicou que as neurociências vão do nível molecular até o nível mental, e que isso é visão holística. Porém, correlatos neurais não significam que o cérebro produza as experiências religiosas.
Peres criticou – e outros o fizeram de modo enfático ao longo do evento – a interpretação sensacionalista e equivocada dos estudos neurocientíficos pela mídia não especializada. Apenas se esqueceu de criticar a atitude contrária, ou seja, o aproveitamento da mídia por parte de cientistas especializados, mas mal-intencionados, desejosos de divulgar suas teses materialistas. A mídia pode ter sua parcela de culpa, sim, mas que produz ciência duvidosa não é a mídia; ela apenas noticia.

Uma das primeiras falas de Marcelo Mazza (USP) parece evidenciar o modo como neurocientistas vêem a questão espiritual:
“O assunto deve ser considerado pela comunidade científica com mais respeito. (...) Fé, religiosidade, espiritualidade é o que se está estudando e não Deus, que está fora do escopo científico. Cuidado com os termos que parecem bem aceitos no senso comum, mas que não são assim.” [Foi uma referência ao “Deus está no cérebro?” de Carlos Durgante, minutos antes.]
Essa afirmação de Mazza deixa escapar a tônica da atual pesquisa neurocientífica sobre espiritualidade: estudar os efeitos sobre o organismo e o indivíduo, mas nunca se perguntar sobre a realidade ou não daquilo que a espiritualidade e a religião propõem, dada a subjetividade do processo. Nos encontramos, então, diante de um novo tabu em Ciência?
Para Mazza, a crença é a aceitação de algo como verdade, ou pensar que algo pode ser verdade. Ela pode ser explícita (“pode ser verdade”) ou implícita (“se tem certeza de que é verdade”). Já a fé é racional, mas não é lógica. O lógico segue regras, o racional não. Não ter religião (mas ter espiritualidade) é não ter fé histórica (a crença instituída, de grupo), mas ter fé moral (a espiritualidade como algo individual). A fé histórica é o rito, a fé moral é a certeza, “a fé pelo que ela é”, nas palavras textuais de Mazza.
Depois deste discurso, e de definir o self como uma integração entre cérebro, mente e alma (que ele talvez entenda como um mero processo cerebral!), desqualificou a chamada “foto kirlian” (bioeletrografia), dizendo que “a relação sinal/ruído é muito ruim, e se deve ter cuidado ao pesquisar com aparelhos assim”.
Mazza encerrou sua apresentação com a afirmação da criadora da Neurofilosofia, Patricia Churchland:

“Tudo que nós vivenciamos, nós vivenciamos por meio de nossos cérebros.”

[Continua na próxima edição]


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