terça-feira, 9 de outubro de 2007

 

A Ciência se aproxima da Espiritualidade ?

uma análise crítica do I Congresso Brasileiro de Espiritualidade e Religiosidade na Saúde Mental – Parte 1

Paulo Stekel



Promovido pelo CISAME (Centro Interdisciplicinar de Saúde Mental) e pelo ProntoPsiquiatria (Centro Psiquiátrico de Pronto Atendimento), que atuam junto à Clínica São José, em Porto Alegre (RS), o I Congresso Brasileiro de Espiritualidade e Religiosidade na Saúde Mental foi uma experiência singular e reveladora. Realizado entre 20 e 22 de setembro último, contou com a presença de dezenas de conferencistas, entre eles muitos cientistas, mas também alguns representantes religiosos.
A pergunta-título desta matéria não é despropositada. Realmente ficamos na dúvida se a aproximação tão falada entre ciência e espiritualidade se constitui em algo palpável ou ainda engatinha em meio a preconceitos e despreparo dos cientistas para tratar do assunto. Parece-nos que a segunda hipótese é a verdadeira. Mas é louvável a idéia de uma aproximação, e algumas conquistas estão aparecendo.

Já no início do evento, em uma palestra pública intitulada "Transtorno de Pânico e Religiosidade", Cláudia Wachleski (UFRGS) mostrava que:
“(...)pensamentos nocivos e emoções descontroladas provocam estados ansiosos e depressivos. (...) Religiosidade é a ligação com uma força maior que está dentro de nós, com a espiritualidade interior pertencente ao ser humano. (...) A Psicoterapia pode incorporar a exploração dos aspectos espiritual/religioso mais facilmente, ajudando nas questões de saúde mental."

Durante a Conferência 1, Paulo Dalgalarrondo, prof. Titular de Psicopatologia da UNICAMP, apresentou um panorama das relações entre espiritualidade e saúde. Sua definição de “espiritualidade”, que se diferencia da religião organizada e mesmo da “religiosidade” foi como sendo:
“(...) uma dimensão mais pessoal e existencial; relativamente independente de formas socialmente organizadas de religiosidade; relação com um poder ou força superior; crescimento em todo o mundo de pessoas que se definem como sem religião, mas com espiritualidade. (...) É algo mais emocional e independente.”

Dalgalarrondo apresentou, ainda, um dado interessante: em quase todas as culturas, as mulheres são mais religiosas que os homens, mas são estes que mandam. No séc. XX, se pensava que a causa era o fato das mulheres serem mais socializadas para a religião. Hoje, se pensa no “comportamente de risco”, que é maior entre os homens e desestimula a busca espiritual. Os homens homossexuais são mais religiosos que os heterossexuais, mas as mulheres homossexuais são menos religiosas que as heterossexuais e mesmo que os homens heterossexuais. Não são dados conclusivos, é claro, mas devem ser considerados.
Importante foi a diferença entre “fenômenos religiosos” e “fenômenos psicopatológicos", feita por Dalgalarrondo. Enquanto os fenômenos religiosos têm como características principais conteúdos compartilhados, de natureza visual, que alargam a vida do indivíduo, fazendo-o sentir-se “agindo”, os psicopatológicos são bizarros, idiossincráticos, causam alucinações auditivas, desintegram a personalidade e o indivíduo sente-se passivo na experiência. Poucos dados contradizem o fato de que a prática espiritual diminui a incidência no uso de drogas, álcool e depressão, melhorando a saúde mental.

A única coisa que parece gritar a nossos ouvidos é que, quando cientistas falam sobre espiritualidade, mesmo lhe dando algum crédito, temos a sensação de que dizem baixinho: “É uma ilusão que faz bem à saúde!” Esta foi, pelo menos, a opinião passada diretamente a nós por diversos participantes do congresso, alguns deles, psicólogos com idéias nitidamente espiritualistas.

Letícia Alminhana (UFJF/MG) falou sobre os efeitos das técnicas mente-corpo no tratamento do câncer. Explicou o que seria a psiconeuroimunologia, uma ciência envolvendo a consciência (psique), o sistema nervoso e o sistema imunológico (glandular). Em suas pesquisas, tem usado técnicas de relaxamento durante sessões de quimioterapia, além de visualização criativa (imagens livres), meditação, respiração abdominal, postura relaxada, mantras e focalização da atenção.

Sérgio Lopes (AME/RS), ao falar dos chamados Estados Alterados de Consciência, propõe que se os chame Estados Ampliados de Consciência, por representarem exatamente situações de aumento de consciência. Tais estados são de 4 tipos: Beta (12-20 ciclos/seg, vigília), Alfa (8-12 ciclos/seg, meditação e relaxamento), Theta (3-8 ciclos/seg, sono) e Deltha (menos de 3 ciclos/seg, pré-coma, catalepsia, meditação dos monges budistas na qual há um consumo sutil de energia).
Para Lopes, os estados ampliados de consciência têm as seguintes características: inefabilidade (são sem uma explicação de ordem racional), qualidade noética (como revelações, cheias de significado simbólico e importância), transitoriedade (não podem ser mantidos por muito tempo, como o estado de consciência ordinário) e passividade (sensação de que a própria vontade está adormecida e agarrada por uma força superior).


[No início do evento, foi apresentada a esquete "Estressado, Estressadíssimo, Estressadérrimo", pelo Grupo de Teatro Janela Aberta]

Na opinião de Wellington Zangari (USP), ainda ocorre em algumas universidades do Brasil um cerceamento do debate sobre espiritualidade nos cursos de Psicologia. Por isso defendeu a heterodoxia em Psicologia. Noticiou que o CAPS, o CNPq e a FAPESP já dão bolsas de pesquisa na área de estados alterados de consciência, mas que o Brasil está atrasado na pesquisa, comparado aos EUA, onde se tem escrito muito sobre uma “Psicologia Anomalística”, que estuda experiências alegadamente anômalas (paranormais), isto é, fenômenos raros. No Brasil, essa pesquisa é praticamente desconhecida.
Zangari foi um dos poucos cientistas que, durante o congresso teve a coragem de se fazer a seguinte pergunta (e respondê-la):
“E, se os processos anômalos de interação entre o ser humano e o meio existirem [isto é, não forem a mera “ilusão boa para a saúde”, como dissemos há pouco]? Então, nossa visão tradicional da separabilidade entre um indivíduo e outro terá que ser revista.”

Carlos Durgante (CISAME/RS) afirmou que espírito, mente e corpo estão se tornando objeto de estudo das neurociências. Na verdade, tais pesquisas iniciaram por volta de 1970, com o antropólogo Eugene D'Aquilli (EUA) e sua Neuroteologia, que procura explicar como a mente funciona para criar as experiências religiosas.
Segundo Durgante, pesquisas feitas com monges tibetanos, freiras católicas e evangélicos, demonstram a ativação do circuito cortical fronto-parietal e estruturas do lobo temporal quando se tem uma experiência religiosa. A meditação reorganizaria o cérebro, permitindo controlar e modificar as reações automáticas. Dessa forma, as experiências religiosas ajudariam na imunidade, na circulação sangüínea e na saúde em geral.
Por fim, Durgante deixou a pergunta: “Estaríamos todos nós predispostos a sentir uma idéia da divindade a partir dos nossos processos cerebrais?” Sua resposta criteriosa: “De qualquer forma, não se pode afirmar que 'Deus' está no cérebro.” Contudo, não faltam cientistas materialistas tentando localizar Deus e a sede de toda a experiência religiosa/espiritual nos circuitos cerebrais. Confundem, então, o veículo com o motorista e ainda se consideram cientistas...

Continuando essa linha de raciocínio, Júlio Peres (USP) explicou que as neurociências vão do nível molecular até o nível mental, e que isso é visão holística. Porém, correlatos neurais não significam que o cérebro produza as experiências religiosas.
Peres criticou – e outros o fizeram de modo enfático ao longo do evento – a interpretação sensacionalista e equivocada dos estudos neurocientíficos pela mídia não especializada. Apenas se esqueceu de criticar a atitude contrária, ou seja, o aproveitamento da mídia por parte de cientistas especializados, mas mal-intencionados, desejosos de divulgar suas teses materialistas. A mídia pode ter sua parcela de culpa, sim, mas que produz ciência duvidosa não é a mídia; ela apenas noticia.

Uma das primeiras falas de Marcelo Mazza (USP) parece evidenciar o modo como neurocientistas vêem a questão espiritual:
“O assunto deve ser considerado pela comunidade científica com mais respeito. (...) Fé, religiosidade, espiritualidade é o que se está estudando e não Deus, que está fora do escopo científico. Cuidado com os termos que parecem bem aceitos no senso comum, mas que não são assim.” [Foi uma referência ao “Deus está no cérebro?” de Carlos Durgante, minutos antes.]
Essa afirmação de Mazza deixa escapar a tônica da atual pesquisa neurocientífica sobre espiritualidade: estudar os efeitos sobre o organismo e o indivíduo, mas nunca se perguntar sobre a realidade ou não daquilo que a espiritualidade e a religião propõem, dada a subjetividade do processo. Nos encontramos, então, diante de um novo tabu em Ciência?
Para Mazza, a crença é a aceitação de algo como verdade, ou pensar que algo pode ser verdade. Ela pode ser explícita (“pode ser verdade”) ou implícita (“se tem certeza de que é verdade”). Já a fé é racional, mas não é lógica. O lógico segue regras, o racional não. Não ter religião (mas ter espiritualidade) é não ter fé histórica (a crença instituída, de grupo), mas ter fé moral (a espiritualidade como algo individual). A fé histórica é o rito, a fé moral é a certeza, “a fé pelo que ela é”, nas palavras textuais de Mazza.
Depois deste discurso, e de definir o self como uma integração entre cérebro, mente e alma (que ele talvez entenda como um mero processo cerebral!), desqualificou a chamada “foto kirlian” (bioeletrografia), dizendo que “a relação sinal/ruído é muito ruim, e se deve ter cuidado ao pesquisar com aparelhos assim”.
Mazza encerrou sua apresentação com a afirmação da criadora da Neurofilosofia, Patricia Churchland:

“Tudo que nós vivenciamos, nós vivenciamos por meio de nossos cérebros.”

[Continua na próxima edição]


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