quinta-feira, 9 de outubro de 2008
[Entrevista] Monge Shaku Shoshin (Dr. Joaquim Monteiro)
Entrevista concedida a Paulo Stekel
Sempre tivemos o desejo de entrevistar o Dr. Joaquim Monteiro, cujo nome religioso é Rev. Shaku Shoshin. Este desejo tornou-se mais intenso por sua visível participação em protestos pró-Tibete no Brasil, a partir de março deste ano. O vimos de relance durante o encerramento do ano novo tibetano, no Chagdud Gonpa Brasil, e não pudemos conversar.
Em março, o Rev. Shaku Shoshin foi uma das cerca de 30 pessoas que participaram dos protestos em prol do Tibete junto ao Consulado da China, em São Paulo. Em maio, participou, no Plenário da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, do debate público sobre a questão tibetana, manifestando contundentes e compassivas ponderações. Por fim, em 23 de agosto, o monge estava presente, aliás, era o único sacerdote budista presente, no protesto de luz promovido por Mariane Alexandre, atualmente a Coordenadora Estadual (SP) do movimento Tibete Livre – Brasil, protesto este realizado em frente ao Consulado da China, em São Paulo. Ali entoou mantras e celebrou preces. Inequivocamente, o Rev. Shaku Shoshin é um budista engajado em causas sociais, como poucos budistas brasileiros, infelizmente.
Joaquim Monteiro (seu nome verdadeiro) é psicólogo, escritor, tradutor e Doutor em estudos Budistas pela Universidade de Komazawa (Tóquio, Japão), na especialidade “Budismo Chinês” (2000). É autor de diversos livros e artigos acadêmicos, a grande maioria deles em japonês. Pertence ao Budismo Terra Pura japonês, uma escola do Budismo Mahaiana.
A entrevista a seguir é pautada por questões atuais do Budismo no mundo e no Brasil, a questão tibetana, os direitos humanos e o Budismo Engajado:
Horizonte: Depois de cerca de 2500 anos de história, o Budismo agora se encontra com realidades como a globalização, a era da Internet, o laicismo, etc., onde tudo parece integrado e as informações fluem de modo a refletir uma diversidade cultural, mas uma necessidade de unidade moral e ética. Como você vê o futuro da prática budista a partir do século XXI, no mundo e no Brasil?
Rev. Shaku Shoshin: É um fato indiscutível que o Budismo confronta uma situação absolutamente inédita nesse começo de século. Acredito que seja necessário um esforço de pensamento no sentido de refletir sobre a sociedade do capitalismo globalizado a partir de premissas budistas. Só um esforço de pensamento capaz de pensar a sociedade contemporânea a partir das premissas da tradição budista poderá fornecer os fundamentos de uma nova modalidade de prática budista no mundo e no Brasil. Acredito que essa seja uma necessidade premente no Brasil, na medida em que a prática budista entre nós ainda não está alicerçada em uma reflexão a partir da tradição.
Horizonte: Está nascendo um "budismo ocidental" e um "budismo brasileiro"? O que estas formas teriam de diferente das tradicionais?
Rev. Shaku Shoshin: Parece-me realmente que está em curso a formação de um Budismo especificamente ocidental. Como o Budismo se faz presente em muitas sociedades ocidentais de um caráter completamente diverso e praticamente todas as tradições budistas estão presentes no Ocidente acho difícil prever o rumo que esse “Budismo ocidental” em formação irá assumir. É mais fácil responder a respeito da formação de um “Budismo brasileiro”, pois não só participei diretamente de alguns períodos de sua formação como também estou engajado em suas atuais questões. Assim sendo, se torna mais fácil pensar a respeito do atual “Budismo brasileiro” tanto em termos de seus avanços mais significativos quanto em termos dos obstáculos que vem encontrando.
Acredito que o desenvolvimento do “Budismo brasileiro” na sociedade do pós-guerra pode ser dividido grosseiramente em três períodos. O primeiro está centrado nas décadas de 60 e 70. Trata-se de um Budismo fortemente marcado pela mentalidade da contracultura e por uma perspectiva essencialmente individualista. A influência desse período ainda é muito forte no atual “Budismo brasileiro”, mas uma parte considerável de sua mentalidade me parece ser constituída de um saudosismo nostálgico que precisa ser urgentemente superado. Em termos de escolas esse período foi marcado por uma influência dominante do Theravada e do Zen, mas acredito existirem algumas seqüelas nessa influência que precisam ser superadas criticamente. A visão do Theravada nesse período era fortemente marcada por uma perspectiva falsamente modernista dessa escola como o “Budismo original” compreendido como um racionalismo e como um humanismo em contraste com as “distorções” do Budismo posterior. Isso se traduz até hoje em uma visão extremamente pobre da própria tradição Theravada: acredito que a superação critica dessa mentalidade é uma das grandes tarefas do atual Budismo brasileiro. No caso do Zen ocorreram distorções ainda mais severas: a influência de D.T.Suzuki provocou terríveis distorções como o anti-intelectualismo e o desprezo pela doutrina e pelo pensamento budistas. Acredito que uma crítica severa ao pensamento de D.T.Suzuki se constitua em uma das questões mais importantes do atual “Budismo brasileiro”. A meu ver Suzuki apresenta uma perspectiva essencialmente mágica do Budismo que ajudou a enraizar uma postura individualista que despreza o pensamento budista e que se constitui em um sério obstáculo ao desenvolvimento da Sangha budista em nosso país.
O segundo se deu a partir dos meados da década de 90 através da introdução das diversas linhagens do Budismo tibetano em nosso país. Nesse período o Budismo começou a ter uma visibilidade social bem maior e sua influência se expandiu bastante para além das comunidades étnicas de origem oriental.
Acredito que o terceiro período, que agora vivenciamos se constitua em uma avaliação crítica dos avanços e dos obstáculos presentes nos dois períodos anteriores. Com a expansão das comunidades budistas brasileiras e com sua crescente presença na sociedade não será possível evitar a questão da relação dessas comunidades com a sociedade brasileira. Acredito assim, que o essencial no momento é fortalecer a educação e o estudo sistemático do Budismo. Acredito também que só existirá um “Budismo brasileiro” no momento em que os budistas começarem a pensar a sociedade brasileira a partir das premissas da tradição budista.
Horizonte: Durante o levante tibetano de março deste ano, você foi um dos poucos praticantes budistas do Brasil a falar e escrever abertamente sobre a questão, condenando a repressão patrocinada pelo regime autoritário chinês. O que o moveu nesta direção e o que parece ter impedido que outros líderes budistas se manifestassem com a mesma veemência?
Rev. Shaku Shoshin: As posturas que assumi durante o levante tibetano foram derivadas em parte do estudo e da reflexão que venho desenvolvendo há mais de duas décadas sobre a questão tibetana e em parte de um sentimento de urgência que me fez perceber que estava enfrentando um momento de importância decisiva. Senti que era chegado o momento de passar à ação. No que diz respeito às lideranças budistas a que você se refere não posso dizer nada de conclusivo a respeito dos eventuais obstáculos que as impediram de agir. Com umas poucas exceções os líderes budistas brasileiros responderam à atual situação através de um silêncio para mim incompreensível. Não quero e não posso dar uma resposta conclusiva a respeito da postura dessas lideranças a que se refere, mas acredito que seu silêncio talvez seja uma expressão da mentalidade individualista que tem bloqueado tanto o estudo sistemático do Budismo em sua relação com a sociedade contemporânea quanto a formação de uma visão comunitária conducente à práxis social. Se for esse realmente o caso, acredito que a superação dessa mentalidade seja precisamente a tarefa mais importante das lideranças budistas brasileiras.
Horizonte: Poderíamos dizer que essa omissão na época do levante tibetano por parte de líderes budistas, em especial a comunidade brasileira do Budismo Tibetano, constitui-se num contrasenso? Pelo menos, esta tem sido a opinião que muitas pessoas, budistas ou não, têm remetido a nossa redação!
Rev. Shaku Shoshin: Essa é outra questão que não posso responder de forma conclusiva. Tenho pouco contato cotidiano com as Sanghas tibetanas em nosso país e muito poucas experiências de diálogo com seus líderes. Levantando uma hipótese a ser confirmada, essa postura dos budistas de tradição tibetana pode ser uma falha circunstancial da introdução dessa tradição ou pode ser a expressão de que o processo de introdução do Budismo tibetano no Brasil possui aspectos mais problemáticos do que geralmente se pensa. Tive até hoje muito pouco contato com os budistas de tradição tibetana no Brasil, mas percebi através desses contatos alguns pontos extremamente positivos e alguns aspectos possivelmente problemáticos. O que sinto como a contribuição mais consistente do Budismo tibetano em nosso meio é que ele conseguiu formar uma minoria de estudiosos sérios do pensamento budista em um nível jamais divisado em nosso país. No entanto, sinto que o senso comunitário centrado nas linhagens talvez tenha sérias dificuldades na passagem para a práxis social concreta. Todas essas são questões que gostaria de compartilhar em um eventual diálogo com os líderes das tradições tibetanas no Brasil.
Horizonte: Você faz parte do Colegiado Buddhista Brasileiro (CBB). Qual tem sido a posição do CBB quanto à questão tibetana, em particular, e quanto a questões sociais de ordem geral? Os membros compartilham a noção de um "budismo socialmente engajado" proposto pelo monge vietnamita Thich Nhat Hahn?
Rev. Shaku Shoshin: A formação do CBB foi um acontecimento fundamental para o atual “Budismo brasileiro” pois se constitui em um indício de que o Budismo começa a sentir a necessidade de atuar de forma mais planejada e sistemática no momento em que passa a ultrapassar as antigas fronteiras demarcadas pela mentalidade individualista. No entanto, é um fato que os membros do CBB possuem visões bastante díspares tanto a respeito do Budismo quanto no que diz respeito à sociedade. Existe assim uma séria dificuldade de formar um consenso mínimo que possibilite uma ação concreta em nosso contexto. A respeito da questão tibetana a postura do CBB tem se expressado como um apoio ao movimento de libertação do povo tibetano, mas acredito que seja necessário um debate interno mais intenso e mais sistemático. Como um exemplo, posso apontar para a necessidade urgente de um debate interno a respeito das propostas muito consistentes defendidas pelo Professor Flávio Marcondes Velloso a respeito de um possível encaminhamento pelo governo tibetano no exílio de um processo de reintegração de território para a Corte internacional de Haya. Acho esse um debate inescapável. No que diz respeito às questões sociais em geral acho que seria cruel exigir isso do CBB no momento: uma visão do que fazer na sociedade brasileira só poderá existir a partir do momento em que os budistas começarem a refletir sobre a sociedade brasileira a partir de premissas budistas.
Quanto à influência do “Budismo engajado” defendido por Thich Nhat Hahn posso dizer que ela é fortemente presente em alguns membros do CBB e menos relevante em outros. Embora o CBB encoraje no essencial a participação social dos budistas acredito que não existe uma visão consensual a respeito do “Budismo engajado”.
Horizonte: Você lecionou em Taiwan por praticamente dois anos, no Departamento de Língua Japonesa da Ishou University, não é mesmo? Como é a vida dos taiwaneses, comparada à dos chineses continentais? O budismo é praticado de forma mais livre em Taiwan do que na República Popular da China?
Rev. Shaku Shoshin: Taiwan é uma sociedade extremamente problemática, mas ela foi palco de um dos eventos mais decisivos do fim do século XX: a derrubada da ditadura militar do Guomindang e o estabelecimento de um regime democrático com fortes preocupações sociais. Guardadas as devidas proporções, não hesitaria em dizer que a derrubada dessa ditadura militar sanguinária possui uma importância comparável ao fim do Apartheid na África do Sul dentro da conjuntura de fim de século. A perspectiva da formação de uma nova sociedade Taiwanesa está fortemente ameaçada pelas pressões obscurantistas do governo de Pequim, pelo isolamento internacional de Taiwan e pelo retorno ao poder do Guomindang nas últimas eleições. No entanto, o fim da ditadura militar e o estabelecimento de um regime democrático com fortes interesses sociais se constituíram a meu ver em uma das grandes vitórias da humanidade no fim do século XX. Com todas as dificuldades que enfrenta atualmente Taiwan conseguiu desenvolver realizações no campo da distribuição da renda, da defesa do meio ambiente e da promoção dos direitos humanos que fizeram dela uma sociedade “muito mais à esquerda” ( supondo que termos como “esquerda” e “direita” ainda façam sentido em nossa sociedade atual ) do que o capitalismo selvagem administrado pelo Partido Comunista que existe na China atual. Acredito assim que está na hora de liquidar de vez com a visão derivada da guerra fria que compreendia o conflito entre Taiwan e a China como um conflito entre anticomunismo/comunismo. Essa visão nos fecha completamente os olhos para os problemas atualmente em curso se constituindo em uma distorção ideológica completamente ultrapassada.
No que diz respeito à situação do Budismo em Taiwan e na China existe um forte renascimento budista em curso, mas esse renascimento me parece possuir características completamente diversas nesses dois países. Em Taiwan a participação do Clero budista foi um fator decisivo na derrubada da ditadura militar e isso gerou ao mesmo tempo uma demanda por um Budismo autenticamente taiwanês que fosse algo mais do que um “Budismo chinês em Taiwan”. É importante observar que o pensamento do Rev.Yin-shun (1906-2005), indiscutivelmente a maior figura intelectual e espiritual no moderno Budismo chinês e taiwanês se constituiu em uma influência decisiva nesse processo da luta dos budistas taiwaneses contra a ditadura militar. O renascimento budista na Taiwan pós-1987 (ou seja, pós ditadura militar) foi marcado em parte por um forte engajamento social e em parte pela demanda de um Budismo autenticamente taiwanês.
A situação me parece ser bastante diferente na China. O Partido Comunista pode estar promovendo um renascimento budista como forma de manter a unidade cultural do país, mas os controles estatais ainda são muito fortes e este renascimento me parece estar se dando de uma forma bastante caótica. Existem rumores que apontam para a existência de tendências não conformistas no atual Budismo chinês, mas acredito que essas tendências levarão bastante tempo para se firmar. Acredito que é importante um interesse maior dos budistas brasileiros a respeito do que acontece nos Budismos taiwanês e chinês e que podemos aprender muito com os novos desenvolvimentos do Budismo taiwanês a partir de 1987. Acredito que ele pode ser um marco para os praticantes do “Budismo engajado”.
Horizonte: Que relações você vê entre Budismo e Direitos Humanos? Podemos inserir o mundo budista definitivamente neste âmbito? Como isso poderia ser feito?
Rev. Shaku Shoshin: Essa é outra questão decisiva que exige uma séria consideração. Acredito que o conceito de direitos humanos é um produto da modernidade essencialmente distinto das diversas modalidades de defesa da dignidade humana nas sociedades tradicionais e que ele seja um conceito absolutamente indispensável para a defesa da dignidade humana face à incontrolável violência do capitalismo globalizado. Assim sendo, acredito não só que os budistas devem assumir uma postura essencialmente afirmativa em relação ao conceito dos direitos humanos como também que eles precisam elaborar uma perspectiva própria desse conceito a partir das premissas de sua tradição. Esse é um assunto amplamente discutido no atual Budismo japonês e já escrevi alguns artigos nessa língua que tratam da relação entre Budismo e direitos humanos. A nível filosófico acredito que existem fortes pontos em comum entre o Budismo e a concepção dos direitos humanos que possibilitam a articulação de uma visão especificamente budista nesse campo. Exemplos significativos dessa convergência filosófica são a existência no Budismo de um conceito abstrato da condição humana (no sentido de uma visão da condição humana para além das distinções de etnia, cultura e gênero) e de uma ética social que enfatiza a necessidade de fortes mecanismos de justiça econômica. Tudo isso é muito próximo de uma visão universalista dos direitos humanos como justiça social.
Horizonte: O autoritarismo, a discriminação e o revanchismo religioso por conta de divergências religiosas, preconceito, homofobia, machismo ou outros motivos são coisas raras na história do Budismo, embora não sejam inexistentes. Em certos países budistas alguns destes problemas foram mais intensos que em outros. De qualquer forma, sua intensidade é visivelmente menor que aquela que a história nos mostra no caso das religiões teístas ocidentais? Isso seria explicado pela visão mais empírica e experiencial das práticas religiosas orientais, centradas no indivíduo e não na submissão coletiva, ou pode ser atribuído a outro motivo?
Rev. Shaku Shoshin: Essa é outra questão extremamente complexa que exige uma séria consideração. As enormes diferenças entre as diversas tradições budistas a esse respeito, assim como as diferenças entre países e épocas fazem com que essa questão assuma uma enorme complexidade. Acredito que uma resposta a essa questão exige uma análise rigorosa da história das sociedades envolvidas. Faço no entanto uma única ressalva e o faço de forma bastante incisiva: precisamos superar urgentemente uma visão do Budismo como “exceção absoluta na história da humanidade”. Tomando por exemplo o mito de que o Budismo realmente existente sempre possuiu um caráter pacifista sou obrigado a admitir que a tomada de consciência do apoio dado pelo Budismo japonês às guerras imperialistas desenvolvidas pelo estado japonês no século XX foram para mim a fonte de um intenso sofrimento.
Existe, no entanto, um fator que me anima e que me estimula na relação com o Budismo: a incomparável honestidade e integridade de alguns budistas japoneses do pós-guerra em confrontar de forma contundente esse aspecto problemático de sua tradição. Se destacam aí Professores como Ychikawa Hakugen, Shigaraki Takamaro e Hakamaia Noriaki que se constituem a meu ver no mais elevado patamar ético não apenas do Budismo japonês do pós-guerra como também da própria sociedade japonesa contemporânea. Destacam-se aí também pensadores sem conexão formal com o Budismo, mas fortemente influenciados por seu pensamento como foi o caso do Professor Yenaga Saburo. Esses pensadores japoneses do pós-guerra abriram dimensões radicalmente novas do pensamento e da ação social budistas que estão esperando por um maior reconhecimento pelos budistas brasileiros. Existe aí claramente o aparecimento do melhor através do confronto radical com o pior e mais criminoso aspecto da tradição. O Budismo japonês pode ser marcado por aspectos profundamente problemáticos, mas ele não só foi a primeira tradição budista a dominar as categorias da modernidade e de formular sua própria versão dessa modernidade: ele foi o primeiro a confrontar de forma contundente as profundas contradições dessa sua versão da modernidade. Acredito ser indispensável aprender mais sobre essa dimensão aqui no Brasil.
Horizonte: Em março deste ano você participou do ato de solidariedade ao povo do Tibet diante do Consulado da China, junto com outras trinta pessoas. Em seu relato, escreveu textualmente que "Budismo sem coragem, pensamento e ação não passa de fato de um pseudo-Budismo, possivelmente parecido com a coisa original mas indigno de comparação com ela". O que isso realmente implica? Seria sinal de que os praticantes budistas precisam se inserir mais nos problemas das comunidades em que vivem ou é mais sério ainda?
Rev. Shaku Shoshin: Minhas declarações a esse respeito devem ser tomadas em um sentido absolutamente literal. Acredito que a questão ultrapassa infinitamente o problema do nível relativo do envolvimento dos budistas brasileiros com as questões sociais. O que está em jogo aí é a existência ou não de uma consciência das implicações da tomada de refúgio nas “Três Jóias” do Buddha, do Dharma e da Sangha.
Horizonte: Atualmente, podemos sentir um conflito (ainda sutil) entre a religião (qualquer uma) e o estado, que se define na maior parte do mundo como laico, mas sem a capacidade de promover uma mudança real na vida das pessoas, por ser um corpo decadente desconectado do ser humano como indivíduo. Seria possível uma visão complementar ao invés deste conflito, uma espécie de "caminho do meio" para o bem-estar social E espiritual do ser humano?
Rev. Shaku Shoshin: Essa é outra questão central de nossa época. Acredito que nossa época se caracteriza por entre outras coisas um conflito bastante específico entre o estado laico e as novas tendências fundamentalistas na religião. O estado laico em nossa época é fundamentado em grande parte em uma visão de mundo cientificista incapaz de fundamentar a ética social e passou a possuir uma função essencialmente excludente na medida em que abdicou de promover a justiça social. Por outro lado, tendências fundamentalistas na religião sem fundamentação filosófica têm proporcionado um esteio moral extremamente problemático para as populações excluídas que mantém sua coesão interior às custas de uma cristalização em um universo que não consegue apreender as complexidades da sociedade contemporânea. Como essas duas tendências não possuem quase nenhum terreno comum o diálogo entre elas se torna virtualmente impossível. Isso está conduzindo a meu ver a uma cisão social sem paralelos. Acredito assim que só uma nova perspectiva filosófica capaz de superar tanto o cientificismo quanto o fundamentalismo será capaz de fundamentar uma nova relação entre o estado e as religiões. Essa possibilidade existe, mas precisa ser compreensível ao ponto de se concretizar nas relações do cotidiano.
Horizonte: Agradecemos muito a sua gentileza em ceder-nos esta entrevista e o parabenizamos por sua coragem em defender o povo tibetano, os direitos humanos, e em ser uma das poucas vozes do Budismo brasileiro a denunciar o genocídio promovido pela ditadura de Pequim. Gostaríamos que você deixasse algumas palavras a nossos leitores sobre a responsabilidade social que uma pessoa verdadeiramente religiosa deve demonstrar para com todos os seres humanos, não esquecendo de outros seres, como plantas e animais.
Rev. Shaku Shoshin: Acredito que toda espiritualidade verdadeira se expressa através de uma vida ética e que essa vida possui características que conduzem necessariamente a uma relação tensa com o senso comum de nossa época. Toda espiritualidade ética se expressa também através de um processo de auto-interrogação que inclui necessariamente um questionamento dos valores que norteiam o processo de nossas vidas. Em uma época marcada não só por enormes desníveis de renda, pela inquietante presença do genocídio e pela guerra como também pela ameaça da extinção de todo o processo da vida incluindo aí as realizações humanas em sua totalidade em função de fatores como o aquecimento global essa auto-interrogação assume uma dimensão particularmente severa.
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